MAPEAMENTO QUALITATIVO DAS SITUAÇÕES DE ACOLHIMENTO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES NO ESTADO DA BAHIA: REFLETINDO SOBRE AS FRONTEIRAS ENTRE CUIDADO, NEGLIGÊNCIA E ACOLHIMENTO 

Gislayne de Santana Souza  

Graduada em Serviço Social pela Universidade Católica do Salvador. Especialização em Gestão Social e Políticas Públicas. Mestranda em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo – PPGNEIM/UFBA – e pesquisadora interna do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Infância e Adolescência – GEPIA/MPBA.

Resumo 

O presente artigo propõe explorar debates sobre cuidado, negligência e serviços de acolhimento, a partir do mapeamento das situações que motivaram o acolhimento de crianças e adolescentes no estado da Bahia em 2021. O estudo tem como finalidade conhecer os encontros e desencontros que ocorrem entre as condições familiares, as estruturas sociais e as intervenções institucionais sobre os temas mencionados. Busca ainda pontuar questões invisibilizadas que contemplem abordagens sobre pobreza, raça e gênero, principalmente, nas situações denominadas como negligência familiar. Para tanto, além dos dados, é apresentada uma breve revisão bibliográfica e na reflexão final é enfatizada a necessidade de aprofundamento sobre a negligência, bem como sobre as situações familiares e, sobretudo, a responsabilização estatal nesses contextos.  

Palavras-chave: criança e adolescente; cuidado; negligência; acolhimento; criminalização da pobreza. 

1 Introdução 

Ao analisar historicamente a organização de cuidados para crianças e adolescentes no Brasil, verifica-se uma responsabilização do Estado de forma parcial e seletiva, visto que essa responsabilidade é direcionada majoritariamente para as famílias. Para Molinier (2004, p. 227) o conceito de cuidado engloba: 

[…] uma constelação de estados físicos ou mentais e de atividades trabalhosas ligadas à gravidez, criação e educação das crianças, aos cuidados com as pessoas, ao trabalho doméstico e, de forma mais abrangente, qualquer trabalho realizado a serviço das necessidades dos outros […] 

A abordagem de cuidado empregada neste trabalho tem como foco o cuidado prestado ao público de crianças e adolescentes e, apesar dos recortes estabelecidos para discussão do tema, não se fecha ao compreender a multiplicidade de fatores sociais, perspectivas e vivências culturais sobre o cuidar. Em virtude da busca por hegemonias culturais, diversos modelos familiares, sociais e laborais foram disseminados enquanto norma, em escala global, assim, a prestação de cuidado em diversas sociedades apresenta elementos essencialistas que reproduzem divisão de papéis, separação e delegação de tarefas diferenciadas entre sexos, raça, gerações, entre outros. Entretanto, essa discussão tem permanecido, majoritariamente, restrita ao âmbito privado do lar, sendo o Estado acionado, geralmente, em situações em que há dificuldade e/ou impedimento de cuidado na esfera familiar. 

Segundo a publicação da Oxfam1, em 2020, cujos dados são baseados também em informações da Organização Internacional do Trabalho (OIT), aponta-se que a OIT “estimou que, até 2030, haverá u1m número adicional de 100 milhões de idosos e de 100 milhões de crianças de 6 a 14 anos que necessitarão de cuidados.” (OXFAM, 2020, p. 14, grifo nosso). A crise de cuidado decorrente das novas dinâmicas sociais demostra que a compreensão desse cuidado passa a ser um elemento importante para proteção de diversos grupos, especialmente crianças, adolescentes e idosos. 

No Brasil, a deficiência estrutural e a pouca resposta do Estado, atreladas ao quadro de pobreza, desigualdades de classe, gênero, raça, sobretudo no acesso às políticas públicas, desencadeiam cenários complexos para as famílias. Suas consequências podem contribuir para não oferta dos cuidados essenciais no desenvolvimento da infância e juventude, além da sua desproteção e tais situações podem motivar o acolhimento institucional dessas crianças e adolescentes. 

A escassez de informações e estudos sobre as motivações do acolhimento institucional aponta a indiferença dos atores públicos diante das singularidades dos contextos, assim, ao observar as crianças e adolescentes em acolhimento apenas como vítimas da violência familiar, deixa-se de explorar as estruturas que conformam sua realidade social. 

Além disso, a cultura institucional no Brasil, de criminalização da pobreza e das famílias, também permite o não entendimento de como as questões estruturais corroboram para as situações compreendidas como culpa familiar, bem como dificulta a implementação de mudanças necessárias para prevenção e alteração das situações que provocam o acolhimento. Assim, é importante o aprofundamento sobre as estruturações existentes que podem influenciar a ocorrência ou não dos contextos mencionados aqui. 

2 Conformação da política pública na proteção e cuidado de crianças e adolescentes 

Até o século XX no Brasil, poucas iniciativas debruçaram o olhar para ações voltadas para crianças e adolescentes. A famosa roda dos expostos, criada em 1726, objetivava receber uma parcela de crianças que eram abandonadas, visto que, neste período, grande parte das crianças e adolescentes ainda estavam fadados ao processo de escravidão. 

Já no período imperial, era possível verificar normativas como a Lei do Ventre Livre, que propusera o fim da escravidão de crianças negras que nasceriam a partir daquela data, contudo, tais ações travestidas de benefícios carregam muitas controvérsias por escamotear as relações cruéis entre a sociedade, o Estado e essas crianças. A própria normativa estabelecia que, até os 21 anos, essas crianças permaneceriam sob a tutela dos “senhores de suas mães” e que “o governo poderia entregar a associações, os filhos das escravas, que sejam cedidos ou abandonados pelos senhores delas.” (BRASIL, 1871). Além disso, as crianças nascidas antes desta lei permaneceriam escravizadas. 

Conforme aponta Carreira (2005), tal lei se apresenta como um dos principais adensamentos da situação precária da criança negra, já que estimulou o abandono, a institucionalização e a exposição de crianças, os quais influenciaram fortemente o número de desvalidos nas ruas. 

Após longos anos de desumanização e desamparo, uma normativa estabelecida visou a equacionar questões públicas relacionadas à infância, o Código de Menores, em 1927. Este propunha a “proteção aos menores” distinguindo, logo em seu primeiro artigo, que os menores eram os “abandonados e delinquentes”. A situação irregular dos menores (negros e pobres) era o foco da lei, a qual promovia, entre outras ações, medidas correcionais “aos vadios, mendigos, capoeiras” (BRASIL, 1927). 

A perspectiva da situação irregular dos menores e sua repressão também se mantêm no 2º código de menores, em 1979, carregando ainda toda discriminação construída socialmente desde a época colonial. Ainda sobre esse contexto, de acordo com Faleiros (1995, p. 69): 

É comum se ver a ação da polícia contra crianças, com base em mera suspeita de que estão a infringir a ordem, de acordo com critério exclusivo da polícia quanto a aparências de roupa, cor, caminhar, falar e frequentar espaços públicos. 

No âmbito do judiciário, a função do juiz de menores, conforme expresso no código de menores de 1927, era de analisar a personalidade moral do menor. De acordo com Rizzini (1997, p. 26): “A degradação das classes inferiores é interpretada como um problema de ordem moral e social. Garantir a paz e a saúde do corpo social é entendido como uma obrigação do Estado. A criança será o fulcro deste empreendimento […]” 

O olhar para a infância e juventude, ao longo dos anos, foi sofrendo modificações diversas, principalmente na perspectiva de atendimento aos direitos humanos destes. O Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990, após a abertura democrática do país, apresentou-se como um novo marco regulatório que romperia com o anterior tratamento dispensado a esses sujeitos. Dessa forma, tal legislação apresenta possibilidades de transformação da doutrina de situação irregular para a de Proteção Integral. Baseado na perspectiva do direito, outras legislações em atenção à proteção da criança, do adolescente e sua família, a exemplo da Lei Orgânica da Assistência Social (1993), e de planos como o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária – PNCFC (2006) também são inauguradas. 

Nas últimas décadas, com o acirramento das expressões da questão social, a política de assistência social torna-se central ainda que em moldes familistas2. Na impossibilidade (temporária ou não) da família prover condições de sobrevivência, diversos equipamentos previstos na referida política são acionados, porém, além da pouca responsabilização estatal, a sociedade brasileira apresenta grande contingente de pessoas pauperizadas. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2018, o país tinha 13,5 milhões de pessoas na condição de extrema pobreza, diminuindo as possibilidades efetivas de oferta de cuidado aos membros familiares, sobretudo às crianças e adolescentes (IBGE, 2019). 

Segundo Bernard (2010), os dados demográficos expõem que a família brasileira contemporânea apresenta arranjos diversos e a maioria das que têm mulheres como figuras de referência encontram-se entre as mais pobres. Ainda nessa seara, destaca que “as famílias em situação de pobreza sofrem influência dos processos culturais e sociais de exclusão sistemática […]” e, embora conte esporadicamente com a solidariedade parental ampliada e comunitária, experimenta “uma crescente diminuição de sua capacidade de proteger seus membros.” (BERNARD, 2010, p. 37). 

As autoras Passos e Machado (2021), em estudo sobre os regimes de cuidados no Brasil, apontam que o país, em detrimento de provisões públicas e apoio voltado para crianças e adolescentes, tem “[…] um regime de cuidados que se apoia preferencialmente nas famílias, caracterizando, portanto, um ‘familismo implícito’ ou ‘familismo por negligência’.” (PASSOS; MACHADO, 2021, p. 20). Esses são caracterizados pela diminuta provisão pública e níveis baixos de cuidado formal e ainda de apoio financeiro para cuidar no seio da família. 

Apesar de ser signatário em vários compromissos internacionais, a exemplo da Agenda 2030 e do Compromisso de Santiago (2020), o Brasil ainda não possui contemplado na agenda pública o tema de cuidados como parte integral dos sistemas de proteção social, bem como uma política nacional instituída, a exemplo de outros países da América Latina. Ainda na contramão dos avanços, o país ainda convive com as investidas de redução de recursos públicos para serviços de apoio ao cuidado, a exemplo das creches públicas que já apresentam deficiência de vagas. 

Segundo o IBGE (2019), em 2019, 27,5% de crianças entre 0 a 3 anos não estavam matriculadas por inexistência de escola/creche na localidade, por falta de vaga ou não aceitação de matrícula devido à idade da criança. Somente no Nordeste, esse motivo ocorreu em 49,3% dos casos de crianças maiores de 1 ano. 

A importância da família, sua centralidade, e da convivência familiar e comunitária baseada nos direcionamentos da Lei Orgânica da Assistência Social e no Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária — PNCFC (2006), Plano Nacional pela Primeira Infância (2020a) por si só não apresentam elementos que possibilitem, por parte das famílias, a resolução de problemas relacionados ao cuidado básico das crianças e adolescentes sobre sua responsabilidade. São inúmeras dificuldades em conciliar o tempo entre atividades trabalhistas/remuneradas, com a falta de tempo para o cuidado, escassez de recursos financeiros, ausência de diversas políticas públicas para cuidado em saúde, educação, habitação e muitos outros, necessitando, assim, de intervenção estatal nas responsabilidades de cuidado de crianças e adolescentes. 

Compreendendo a dificuldade evidente que as famílias contemporâneas possuem em ofertar cuidados necessários, especialmente às crianças, algumas regiões de países com políticas implementadas (a exemplo da Costa Rica, Chile3, Colômbia4) têm fomentado iniciativas para execução de sistemas distritais de com a finalidade de oferecer serviços de cuidados de casa a casa, unidades móveis de cuidado para áreas rurais e de difícil acesso, estratégias pedagógicas para ensino sobre esse trabalho aos homens e mulheres, organização de serviços e redes de suporte públicas próximos às residências de pessoas responsáveis por crianças, adolescentes e idosos, principalmente. 

Zola (2016) reconhece essa forma de atuação descrevendo-a como care social, ou seja, do cuidado como trabalho viabilizado pelo poder público, é uma forma de assegurar a proteção social. Descrevendo ainda que o care social deve ser compreendido como um direito de cidadania, o qual deve ser garantido pelas políticas sociais. 

Infelizmente, a ausência de propostas nesse sentido, em países como o Brasil, pode levar à exposição de crianças e adolescentes a situações de riscos, à não oferta dos cuidados essenciais para o desenvolvimento de crianças, e a sua desproteção se faz presente nas circunstâncias que levam ao acolhimento institucional. 

Diante desse cenário, o mapeamento e sistematização das informações sobre motivações para o acolhimento institucional, a partir dos formulários, documentos e relatórios técnicos das inspeções periódicas realizadas em 2021 pela Central de Assessoramento Técnico e Interdisciplinar (CATI) do (CAOCA – MPBA) Centro de Apoio Operacional da Criança e do Adolescente do Ministério Público do Estado da Bahia torna-se relevante para o entendimento dos fenômenos na área da infância e juventude no Estado da Bahia, visto que as motivações de acolhimento também podem servir como indicadores de ausência ou falha em políticas públicas em diversas áreas. 

3 Percurso Metodológico 

Semestralmente o MPBA cumpre seu papel fiscalizatório, visitando as instituições de acolhimento, com vistas ao cumprimento das normativas, sobretudo da Resolução nº 71 de 2011 — (CNMP) Conselho Nacional do Ministério Público, e à plena garantia dos direitos de crianças e adolescentes. A partir dessas inspeções, as profissionais da CATI do CAOCA realizaram o mapeamento das instituições e das condições de acolhimento no Estado. Esse levantamento demonstrou que, em 2021, o Estado da Bahia possuía instituições/serviços de acolhimento em 112 municípios, abrangendo as modalidades: institucional, Casa-Lar e acolhimento familiar. Aspectos coletados nessas ações serviram como base para o mapeamento das situações de acolhimento e para a sistematização dos dados a serem apresentados no presente estudo. O estudo quali-quantitativo de caráter exploratório teve como procedimentos técnicos as pesquisas documentais e bibliográficas. Segundo Gil (1999, p. 43): 

As pesquisas exploratórias têm como principal finalidade, desenvolver, esclarecer e modificar conceitos e ideias, tendo em vista a formulação de problemas mais precisos ou hipóteses pesquisáveis para estudo posteriores […] Habitualmente envolvem levantamento bibliográfico e documental, entrevistas não padronizadas e estudo de caso. 

Para a obtenção de dados, foi realizada a sistematização das informações sobre as motivações para o acolhimento institucional, o perfil dos acolhidos, os fatores preponderantes no contexto vivenciado por crianças e adolescentes, a partir dos formulários, documentos e relatórios técnicos das inspeções periódicas realizadas em 2021 pela CATI do CAOCA-MPBA. Além disso, considerando a diversidade, complexidade e extensão territorial no estado da Bahia e a necessidade de melhor compreensão das regiões, o estudo em questão também considerou a divisão dos territórios utilizada no âmbito Estadual para análise de alguns dos aspectos mencionados. 

Ademais, a realização de análise documental contou com o delineamento sobre os registros, cujo foco seja o processo de cuidado prestado às crianças e aos adolescentes e as situações de negligência em Planos Individuais de Atendimentos (PIAs) encaminhados pelas unidades de acolhimento inspecionadas. Esses foram selecionados de forma aleatória, constituindo uma amostra com seis documentos cujas principais similaridades, envolvendo os aspectos mencionados, foram sistematizadas. 

Em consideração ao sigilo ético, a pesquisa não identificou nomes de pessoas, serviços e unidades nos dados coletados. Para sistematização das informações presentes nos PIAs, cada documento foi identificado como Plano 1 (P1), (P2), (P3), (P4), (P5) e (P6), seguindo a ordem cronológica da coleta de informações. 

4 Acolhimento na Bahia: análise crítica dos dados  

Os serviços de acolhimento para crianças e adolescentes estabelecidos na Tipificação Nacional de Assistência Social (2009) ainda desempenham um papel imprescindível na proteção de crianças e adolescentes que se encontram em situação de ameaça ou violação de direitos. Por isso, faz-se relevante compreender suas características e perspectivas de ações frente às demandas que se apresentam nos territórios, sobretudo no que se refere às políticas públicas e relação familiar das crianças e adolescentes que figuram nesses espaços. 

O levantamento feito em 2021 demonstrou que o estado da Bahia possuía instituições/serviços de acolhimento em 76 municípios baianos, compreendendo as modalidades: institucional, Casa-Lar e acolhimento familiar. A divisão das informações a partir dos territórios apontou a presença de serviços de acolhimento em quase todos os 27 territórios de identidade do Estado da Bahia (Figura 1), exceto os territórios de: Bacia do Jacuípe, Bacia do Rio Corrente e Chapada Diamantina. Ressalta-se que alguns municípios do território de Bacia do Jacuípe aderiram a termos de aceite da Secretaria Estadual para recebimento de acolhidos em serviços regionalizados e havia, no período, a previsão de uma unidade regionalizada para atender alguns municípios do território de Chapada Diamantina. 

Figura 1 – Territórios de identidade da Bahia 

Fonte: Companhia de Desenvolvimento e Ação Regional (CAR) 

Percebe-se ainda a diferença na quantidade e distribuição de serviços nos diferentes territórios, apontando para regiões com cobertura de proteção adequada, outras sobrecarregadas e algumas insuficientes. As regiões com o maior quantitativo de instituições foram: Metropolitano de Salvador, Baixo Sul, Extremo Sul, Piemonte do Paraguaçu e Recôncavo, todas com instituições/serviços em 05 (cinco) municípios dos territórios. As regiões com menor quantitativo de municípios com serviços de acolhimento foram: Irecê, Itaparica, Piemonte da Diamantina e Portal do Sertão, todas com apenas 01 (um) município ofertando os serviços. 

Somente no período de registro das ações realizadas pela CATI, entre agosto e novembro de 2021, foram identificados 929 acolhidos. Visando ao maior aprofundamento sobre os contextos, a caracterização dessas crianças e adolescentes pode contribuir para identificação de indicadores sociofamiliares e da sua recorrência nas situações de acolhimento. Além do conhecimento da realidade, tais aspectos corroboram para reflexão dos fatores estruturantes que mais atingem parcelas de grupos societários. 

4.1 Quem são os(as) acolhidos(as)? 

Além dos fatores socioeconômicos, a desigualdade social apresenta marcadores de diferenças baseados em diversos aspectos da nossa sociedade, a exemplo da idade, gênero e raça. Esses marcadores são fundamentais para o entendimento das circunstâncias que corroboram o afastamento da família de origem. Assim, conhecer o perfil de acolhidos/as no estado possibilita compreender a dinâmica sociocultural que perpassa as situações da infância e juventude. 

Com relação às informações de gênero, cabe ressaltar a ausência de critérios que avaliem tais características a partir da identidade de gênero, sendo considerado, possivelmente, apenas o fator biológico apontado pelas equipes do serviço. As informações obtidas apontam que 457 crianças e/ou adolescentes são identificados como do gênero feminino e 468 do gênero masculino. 

Apesar de não serem perceptivas as diferenças pautadas no gênero ou idade, os dados apresentados confirmam que as informações coletadas na Bahia seguem a perspectiva nacional, em que não há desigualdade expressiva no quantitativo de ingresso em acolhimento quando relacionado aos dois aspectos. Segundo o levantamento realizado pelo Conselho Nacional de Justiça via o Sistema Nacional de Acolhimento e Adoção (2020) “Do total de crianças e adolescentes acolhidos, aproximadamente 50,8% eram do sexo masculino e 49,2% do sexo feminino.” (BRASIL, 2020b, p. 42). Com relação à idade (Gráficos 1 e 2), cabe salientar a existência de acolhidos maiores de 18 anos nos serviços, inferindo a continuidade de longos períodos de acolhimento de adolescente sem a devida resolução das situações. 

Gráfico 1 – Faixa etária das acolhidas 

Fonte: elaborado pela autora, 2022. 

Gráfico 2 – Faixa etária dos acolhidos 

Fonte: elaborado pela autora, 2022. 

Ainda sobre as características das crianças e adolescentes em situação de acolhimento, os critérios de cor/raça foram observados. Segundo Abramovicz e Oliveira (2012, p. 50), não é possível discorrer sobre uma “sociologia da infância que não leve em conta a raça.” Para Nunes (2016, p. 388), “sendo raça uma categoria utilizada no cotidiano de nossas relações sociais, não é possível olhar as infâncias – estas sempre plurais e em contexto – desconsiderando de que modo a raça está presente nos processos sociais de constituição da pessoa.”  

Além disso, Eurico (2018, p. 178) destaca que “a invisibilidade do quesito raça/cor traz como consequência direta o racismo institucional, que judicializa as situações de violação de direitos das famílias pobres, em sua maioria pretas e pardas.” 

Assim, seguindo a perspectiva adotada pelo IBGE para categorização de cor/raça, o levantamento buscou identificar os acolhidos em pretos, pardos, amarelos, brancos e indígenas. Ressalta-se que as informações foram obtidas a partir da percepção das equipes das unidades de acolhimento sem considerar a autodeclaração pelas crianças e adolescentes ou aferição. Destaca-se ainda que o instrumento utilizado para tal levantamento foram as planilhas encaminhadas e não os dados informados pelos serviços de acolhimento. Havendo assim, divergência com o número total de acolhidos/as identificado durante as inspeções. Os dados mostram que, dentre os acolhidos, 621 foram identificados como negros (pretos e pardos), 07 amarelos, 47 brancos, 01 indígena e 184 que não foram informados5 (Gráfico 3).  

Gráfico 3 – Cor/raça dos(as) acolhidos(as) 

Fonte: elaborado pela autora, 2022. 

A partir das situações em que há informações (seiscentos e setenta e seis), verifica-se a continuidade do perfil racial de acolhimento de crianças e adolescentes do período pós Lei do Ventre Livre e do Código de Menores no Brasil, com 92% de negros entre os que informaram cor/raça. Verifica-se ainda que esse quesito também segue a tendência nacional, a qual, conforme o levantamento realizado pelo Conselho Nacional de Justiça via o Sistema Nacional de Acolhimento e Adoção (2020), tinha a maioria das crianças e adolescentes acolhidos negros “parda (48,8%) e preta (15,5%).” (BRASIL, 2020b, p. 43).  

Segundo as informações obtidas, em todas as regiões que apresentaram essas informações, no estado da Bahia, a maioria das crianças e/ou adolescentes acolhidos é negra, conforme apresentado nos dados do Gráfico 4: 

Gráfico 4 – Percentual dos(as) acolhidos(as) negros(as) 

Fonte: elaborado pela autora, 2022. 

Em três regiões, não foi coletada nenhuma informação sobre o quesito cor/raça dos acolhidos, são elas: Itaparica, Irecê e Piemonte da Diamantina. Já em Bacia do Rio Corrente e Chapada Diamantina, como já apontado, não foram identificados serviços de acolhimento no momento da pesquisa. 

Os dados relativos à raça, cor e etnia apontam diversas reflexões sobre o impacto do racismo estrutural na vida de crianças e adolescentes, visto que, como apontado por Almeida (2019), o racismo não se trata de um ou o conjunto de atos discriminatórios e sim um processo em que condições de subalternidade e de privilégios, que se atribuem a grupos sociais, acabam por se reproduzir no âmbito da política, da economia e das relações cotidianas. Inferindo, assim, que as condições de subalternidade, relacionadas ao racismo estrutural, corroboram para contextos complexos de sobrevivência, exposições a situações de violências e vulnerabilidades diversas que também têm alcançado as crianças e adolescentes, sendo um fator que precisa ser considerado para avaliações ampliadas sobre o acolhimento de crianças e adolescentes. 

4.2 Situações que resultaram no acolhimento 

O Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária — PNCFC (2006) destaca a importância dos marcadores legais, sobretudo o Estatuto da Criança e do Adolescente, para a definição dos deveres da família, Estado e sociedade. Porém, o PNCFC também enfatiza que “a definição legal não supre a necessidade de se compreender a complexidade e riqueza dos vínculos familiares e comunitários que podem ser mobilizados nas diversas frentes de defesa dos direitos de crianças e adolescentes.” (BRASIL, 2006, p. 24). Na linha dessa compreensão, o conhecimento das motivações de acolhimento visa a apreender as situações que permeiam a realidade das crianças e adolescentes, as quais também estão atreladas às modificações políticas, econômicas que refletem nas questões familiares. 

Sobre essa necessidade, Eurico (2018, p. 189-190) enfatiza que: 

[…] o público-alvo das unidades de acolhimento institucional tem história, tem classe social, tem raça/cor e a tarefa prioritária é fazer emergir essa história para que se possa conhecer a essência do acolhimento como mais uma manobra do capitalismo de controle sobre a classe trabalhadora. O silêncio ou lacunas deixadas por práticas indiferenciadas, favorecem a criação de fantasias acerca do por quê [sic] eles estão ali, bem como a revolta e a transferência de culpa para as famílias concebidas como incapazes de proteger, amar e cuidar […] 

Visando a identificar parte dessas lacunas apontadas, na coleta de dados, foram especificadas 14 categorias/linhas de motivações para o acolhimento, o preenchimento das informações sobre cada criança e/ou adolescente foi realizado pela equipe técnica dos serviços e, diante da complexidade de algumas situações, uma parcela de crianças e adolescentes apresentaram mais de uma motivação para o acolhimento. As indicações que contemplavam às possíveis motivações seguindo o referencial de nomenclaturas utilizado no formulário de inspeções do CNMP (resolução nº 71/2011), sendo essas: Negligência Familiar, Exploração Sexual, Carência de Recursos Financeiros dos Responsáveis, Abandono, Trabalho Infantil, Outros Motivos, Violência Sexual, Violência Doméstica, Agressão Física, Situação de Rua, Genitores ou Responsáveis Vítimas de Violência, Problemas de Saúde dos Genitores ou Responsáveis, Falecimento de Genitores ou Responsáveis, Reclusão dos Genitores ou Responsáveis. A sistematização das informações (Gráfico 5) mostrou como maiores incidências a negligência familiar presente em 42% das situações, seguida de abandono com 17%. 

Gráfico 5 – Motivação para o acolhimento 

Fonte: elaborado pela autora, 2022. 

Assim, 419 situações apontadas como motivadoras foi de Negligência Familiar. Cabe ressaltar que, no caso de 13 crianças e/ou adolescente, não foram obtidas as informações sobre as motivações do acolhimento, algumas por desconhecimento da equipe do serviço. Os territórios que apresentaram maiores situações de negligência familiar são: Semiárido Nordeste II com 96% por negligência, Médio Sudoeste da Bahia com 67%, Recôncavo com 66%, Bacia do Rio Grande com 63%, Piemonte do Paraguaçu com 63%, Médio Rio de Contas com 61% e Bacia do Paramirim com 60%, conforme Gráfico 6: 

Gráfico 6 – Negligência como motivação em cada território 

Fonte: elaborado pela autora, 2022. 

Tendo em vista a recorrência com que a negligência aparece como fator motivador do acolhimento, faz-se necessário compreender um pouco melhor como alguns documentos caracterizam a negligência. 

4.3 Caracterização da negligência em documentos técnicos 

A análise documental de seis PIAs foi realizada para aproximação e conhecimento de situações específicas que envolvem a negligência familiar, a partir da visão de profissionais dos serviços de acolhimento, sendo possível observar questões relacionadas às especificações secundárias da motivação do acolhimento, as pessoas de referência, fontes de renda, aspectos do local de origem, abordagens e estratégias de intervenção, as quais suscitaram novas reflexões sobre a temática. 

No que tange às especificações secundárias da negligência, verificam-se as seguintes situações elencadas: baixo peso, entrega da criança para equipamento social, responsáveis com transtornos mentais, consumo excessivo de bebidas, dificuldade de cuidar, uso substâncias psicoativas, condição psíquica, situação de negligência em outra unidade de acolhimento, devolução por parte da família adotiva e privação de alimentos. Apesar da escassez de registros e informações sobre a motivação do acolhimento, verifica-se a predominância de situações que demandam intervenções de políticas públicas, sobretudo nas áreas de saúde e social. 

Já sobre a pessoa de referência, destacou-se, majoritariamente, a vinculação das intervenções das equipes junto à genitora, até em situações em que o(a) acolhido(a) já tenha sido inserida em famílias substitutas. Sobre a pessoa de referência, verificou-se ainda a prevalência de situações relacionadas à saúde, principalmente no que se refere ao uso excessivo de álcool e outras substâncias psicoativas. 

No aspecto de renda, foram elencadas como fontes o Programa Bolsa Família, bicos, trabalho autônomo e Benefício de Prestação Continuada. Em alguns documentos que levaram em consideração as coberturas territoriais das famílias, ocorreram descrições pela equipe sobre a ausência de atividades socioeducativas na comunidade, elevado quantitativo de crianças pelas ruas sem atividades, bairro que não conta com serviços da rede socioassistencial e ausência de escola próxima. 

Sobre as abordagens e estratégias de intervenção, os documentos apresentam inexistência de registros das estratégias anteriores executadas pela rede de proteção, ausência de ações visando a busca ativa do genitor e/ou família extensa. Além disso, não há indicação para ações que visem auxílio ao cuidado de crianças, a exemplo de encaminhamento para creches, articulações com pessoas da família ou comunidade para servirem com rede de apoio à pessoa de referência no cuidado como demostrado no Quadro 1: 

Quadro 1 – Similaridades nos registros 

SIMILARIDADES P1 P2 P3 P4 P5 P6 
Especificação do motivo de forma genérica. Sim Sim Sim Sim Sim Sim 
Vulnerabilidade socioeconômica da família. Sim Sim Sim Sim Sim Sim 
Busca de outras referências afetivas para prestação do cuidado. Sim (sem especificar quais) Não Não Sim Não Sim 
Problemas de saúde do cuidador de referência. Sim Sim Sim Não Sim Sim 
Relato de estratégias anteriores que foram executadas pela rede de proteção. Não Não Não Não Não Não 
Informações de diálogo com a família sobre a inclusão em creche ou política, projeto, rede de suporte ao cuidado. Não Não Não Não Não Não 
Fonte: elaborado pela autora, 2022. 

5 Refletindo as fronteiras entre o cuidado, negligência e acolhimento 

Em estudo sobre o conceito de negligência na área da infância, as autoras Mata, Silveira e Deslandes (2017) destacam que a denominação de negligência apresenta um suposto parâmetro de cuidado, o qual é considerado socialmente aceitável e apto para provimento das necessidades das crianças e adolescentes. Essa delimitação acaba, também, por universalizar um limite aceitável de tolerância. Segundo as autoras, 

Esses conceitos, de forte marcação biomédica, são mais ou menos renegociados segundo quem os emprega a partir de uma visada comparativa quanto aos parâmetros de cuidados possíveis a uma determinada classe social, aos recursos disponíveis na comunidade e aos aspectos subjetivos de “compromisso familiar” em buscar atender às necessidades infanto-juvenis. (MATA; SILVEIRA; DESLANDES, 2017, p. 2882). 

Outro ponto de discussão enfatizado pelas autoras é o poder institucional, presente nos agentes e agências de proteção à infância “em classificar atos e famílias como negligentes e as consequências que tais definições acarretam, muitas das vezes funcionando como um dispositivo de controle para a adesão às recomendações profissionais […]” (MATA, SILVEIRA, DESLANDES, 2017, p. 2882). Podendo essas adesões serem de cunho terapêutico, comportamental, ações da vida prática etc. 

Já Hillesheim et al. (2008) apontam a vulnerabilidade do conceito de negligência, o qual pode ser útil em estratégias de governo sobre a população “As famílias são assim reinscritas em um regime de vigilância e regulação; neste sentido, quanto mais indefinido o conceito de negligência, mais ele se molda às necessidades de controle e disciplinamento dos sujeitos.” (HILLESHEIM et al., 2008, p. 178). 

Nesse sentido, compreende-se a importância de problematização sobre os conceitos de negligência, de como ele pode ser interpretado e também utilizado para finalidades distintas. No contexto brasileiro da atuação social junto às crianças, adolescentes e suas famílias, pode-se inferir, principalmente, a partir de dados sobre as desigualdades sociais e da percepção de abordagens nas intervenções, como as expostas no Quadro 1, que parcela das análises sobre a negligência parte de uma visão normativa que pressupõe um patamar igualitário de renda e acesso aos bens e serviços, sendo que esse patamar não tem nenhuma concretude na lógica capitalista, sobretudo em regiões que vivenciam cenários de grandes desigualdades sociais. 

Assim, principalmente no campo social, o olhar sobre possíveis casos de negligência necessitariam de aprofundamento nessas condições, conhecendo o alcance público e fatores satisfatórios para realização do cuidado, pautado em uma lógica que vislumbre que o ato de negligenciar envolve também ter condições favoráveis para cuidar e ainda assim não o realizar. Tais condições precisam abranger, sobretudo, as condições oferecidas no plano público para que a negligência não ocorra. 

Conforme já apontado, 

[…] as preconizações do cuidar podem atuar como uma forma de dominação e de controle social, na medida em que novas diretrizes são instauradas e são submetidas a um regime de vigilância do cuidado na infância. Sendo assim, o descumprimento de certas normas do cuidar, traduz-se em negligência, e, consequentemente, é passível de punição. 

(MATA, SILVEIRA, DESLANDES, 2017, p. 2882)

Apesar do reconhecimento em que há situações de violências por meio da negligência, muitas situações, na verdade, podem retratar a ausência de políticas sociais, de ações para transferência de renda, de políticas de saúde, processos discriminatórios, entre outros. 

Em um sentido semelhante, Nascimento (2012) problematiza as relações entre pobreza, negligência e judicialização, destacando que, nas relações familiares de cuidado com filhos, a negligência seria a porta de entrada mais aparente dada a sua institucionalização. 

Em consonância com o pensamento da autora, percebe-se, em algumas situações, que primeiramente o que ocorre é uma negligência estatal frente as demandas de cuidado, acesso à renda, saúde, entre outras que corroboram para ocorrer situações no âmbito familiar. Essa é ainda, por vezes, pautada em vertentes morais, essencialistas e de criminalização da pobreza, indivíduos e suas famílias colocados como responsáveis pelos seus problemas de inadequação. 

Nascimento (2012, p. 42) problematiza ainda os pontos de vista divergentes entre a família e a rede de proteção, bem como aponta questionamentos sobre as alternativas adotadas nesses contextos: 

Não são poucas as mães que deixam os filhos trancados em casa para cuidar de suas múltiplas tarefas, para elas práticas de proteção, para a proteção oficial, negligência. Nesse exemplo, permanecem fechadas as portas de entrada que poderiam receber a alternativa de trancar os filhos, um possível para poder trabalhar, para poder fazer suas tarefas cotidianas. A única porta que se abre tem respaldo nas regras morais que produzem a negligência. 

Como destacado pela autora e evidenciado na análise documental dos PIAs, as alternativas que poderiam existir, face às situações encaradas como negligência, são impossibilitadas pela vertente moral e discriminatória, pela ausência de serviços e benefícios, bem como a busca de outras saídas pela rede de proteção, as quais evitariam o afastamento da criança e do adolescente de suas famílias, cuidadores de referência, entre outras vinculações. Na perspectiva da judicialização, Nascimento (2012, p. 43) aponta ainda que “A problematização se faz em torno do abrigamento como salvação, como caminho único para famílias pobres, quando se destinam recursos apenas para o abrigamento e não para outras possibilidades.” 

Pode-se inferir que a ausência de alternativas, que poderia prevenir a retirada de crianças e adolescentes do lar, é recorrente, podendo ser retratada na falta de informações sobre as estratégias anteriores executadas pela rede de proteção nos PIAs analisados nesse estudo. Compreende-se ainda que a atenção sobre as ações que possibilitem o suporte ao cuidado também é negligenciada pelas equipes após o acolhimento, visto o diminuto registro sobre a busca de outras referências afetivas para prestação do cuidado e a ausência de informações sobre o diálogo com as famílias, sobre a inclusão em creches ou políticas, projetos, rede de suporte ao cuidado nestes documentos. 

Somando-se a isso, percebe-se a baixa possibilidade defensiva das famílias em contextos de judicialização. No levantamento realizado pela equipe da CATI, verificou-se que, em 48 municípios inspecionados, não havia a participação da Defensoria Pública Estadual nas audiências concentradas, seja pela ausência dessa modalidade de audiência, pela inexistência da Defensoria Pública no município ou pela ausência desta nos encontros. Além disso, em 27 dos 73 serviços de acolhimento que disponibilizaram parte dos PIAs para conhecimento da CATI, não foram encontrados registros de trabalho técnico com as famílias de origem. 

A carência de recursos ainda foi sinalizada em 12 motivações de acolhimento e a presença do termo vulnerabilidade e risco social para especificar o campo outros motivos do acolhimento carece ser destacada, já que reforça o caráter socioeconômico e de políticas públicas que perpassam as situações de acolhimento de crianças e adolescentes, mesmo sendo definido no art. 23 do Estatuto da Criança e adolescente que “A falta ou a carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou a suspensão do poder familiar.” (BRASIL, 1990). 

6 Conclusão 

À luz dessas ponderações de descompasso entre as afirmações de negligências e os aspectos materiais, objetivos e legais na realidade e acesso das famílias, é possível reforçar a necessidade de reflexões ampliadas sobre esse motivo no acolhimento de crianças e adolescentes: 

A passagem do “problema socioeconômico” para a “negligência” revela uma mudança de enfoque na visão da infância pobre e da sua família no Brasil. Se em 1985 considerava-se que motivos como “mendicância”, “maus tratos”, “desintegração familiar” e “doenças do menor” eram decorrência direta de “problemas socioeconômicos”, hoje, mais do que nunca, a família pobre, e não uma questão estrutural, é culpada pela situação em que se encontram seus filhos […] Em suma, parece que a família pobre – e não o “Poder Público” ou “a sociedade em geral” – é o alvo mais fácil de represálias […].
 

(FONSECA; CARDARELLO, 1999, p. 107)

Nesse sentido, é preciso reconhecer as situações de desestruturação a partir do poder público e não primeiramente das famílias. É importante ainda refletir que a negligência estatal perdura após o acolhimento, além das situações precárias e falta de investimento nas unidades de acolhimento e serviços de família acolhedora, as dificuldades de acesso aos serviços não são restritas às famílias. Por vezes, os profissionais dos serviços de acolhimento relatam dificuldades no acesso e oferta de atendimento em políticas de saúde, assistência social, educação, entre outras voltadas às crianças e adolescentes que se encontram acolhidos. 

Essa dificuldade na oferta de serviços públicos para o cuidado de crianças e adolescentes reverbera também nas possibilidades da família extensa receber a criança, o que preveniria seu acolhimento, ou promoveria a sua reinserção. A prestação satisfatória dos serviços públicos de cuidado poderia contribuir, também, para adesão de famílias aos programas de acolhimento temporário (família acolhedora). 

O panorama brasileiro mostra a baixa interferência pública frente a crise de cuidados presente na sociedade contemporânea, sendo que o regime de cuidados se apoia preferencialmente nas famílias, ou seja, sobre um viés familista. Esse se faz presente também nas ações promovidas pelas políticas protetivas como a de assistência social. Observa-se ainda que há em curso a dissolução da responsabilidade pública sobre as questões da coletividade, sobretudo ao ofertar valores irrisórios a partir de programas de transferência de renda para que a população tente resolver seus problemas, sendo que estes não são individuais e nem passíveis de resolução com o que é ofertado. 

Por meio das informações obtidas, não é possível fecharmos conclusões, mas essas expressam elementos importantes para reflexão da lógica prevalecente em torno da perspectiva de negligência, cuidado e acolhimento institucional, sendo possível perceber a prevalência de uma naturalização das categorias negligência e cuidado, bem como a interlocução com perspectivas moralizantes, discriminatórias e essencialistas. Nessa mesma seara, verifica-se a baixa consideração dos aspectos sociais, estruturais e de políticas públicas para avaliação das relações de cuidado ou negligência na atuação profissional apresentada. 

Assim, além de redefinições para compreensões de negligência, fica evidente a importância de pensar a readequação de políticas públicas no sentido de projetar sistemas integrais de cuidado que promovam a corresponsabilidade entre mulheres e homens, Estado, mercado, famílias e comunidade para atender às diferentes necessidades de atendimento à população, especialmente às crianças e adolescentes. 

Referências 

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Notas

1 A Oxfam Brasil é uma organização da sociedade civil, criada em 2014, sem fins lucrativos e independente. Faz parte da rede global, Oxfam, que atua em 87 países promovendo campanhas, programas, ajuda humanitária além de relatórios e pesquisas no âmbito da justiça social. 
2 As políticas de familismo decorrem da forma de atuar do Estado, nesse caso “o Estado insiste na responsabilização das famílias por sua quase integral reprodução.” (SILVA, 2020, p. 86). 
3 Mais informações em: https://https://www.camara.cl/verDoc.aspx?prmID=42768&prmTIPO=DOCUMENTOCOMISION 
4 Mais informações em: https://www.manzanasdelcuidado.gov.co/ 
5 Destaca-se a ausência de informações sobre os quesitos raça, cor e etnia em cerca de 21% dos dados obtidos, o que pode inferir a ausência de notoriedade sobre esses aspectos nas intervenções. 

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