AS MULHERES TRANSEXUAIS FRENTE AO SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO – “A EXISTÊNCIA DE UMA DUPLA CONDENAÇÃO: JURÍDICA E SOCIOMORAL”   

Maria Alexandra Saraiva Apolônio Alves, Beatriz Alves da Cruz, Mateus Almeida Menezes e Vinicius Araujo de Souza   

Maria Alexandra Saraiva Apolônio Alves. Atualmente é Graduanda em Direito pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) e estagiária no Ministério Público do Estado da Bahia.

Beatriz Alves da Cruz. Atualmente é Graduanda em Direito pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS).

Mateus Almeida Menezes. Atualmente é Graduando em Direito pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) e estagiário no Ministério Público do Estado da Bahia.

Vinicius Araujo de Souza. Atualmente é Graduando em Direito pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS).

No Brasil, a questão do encarceramento em massa é uma realidade que desperta preocupação devido a impactos significativos na integridade física e psicológica das pessoas detidas, afinal, globalmente, é um dos maiores em taxa de aprisionamento. Em geral, os presídios são marcados pela superlotação e insalubridade, fatores que comprovadamente contribuem para o surgimento de distúrbios emocionais entre os detentos. 

Dentro desse contexto, as questões de gênero no ambiente carcerário assumem uma dimensão especialmente problemática. O sistema penal se mostra ainda mais prejudicial para pessoas transexuais, aumentando os riscos enfrentados, especialmente, pelas mulheres trans que, via de regra, são colocadas em presídios masculinos, sujeitas a perigos fatais. Essa questão evidencia a importância de considerar fatores psicológicos, sociológicos e filosóficos na aplicação das penalidades, indo além das fronteiras do corpo físico. 

Ademais, especificamente no caso das mulheres trans encarceradas, é alarmante o número de abusos físicos que enfrentam dentro dos presídios masculinos. Assim, essas mulheres são frequentemente abandonadas por suas famílias, o que dificulta sua reintegração e gera consequências psicológicas duradouras.  

O Brasil também registra altos índices de violência e homicídios motivados pela transfobia. Essas estatísticas comprovam que as pessoas trans enfrentam desafios não apenas no sistema penal, mas também na esfera social, sendo frequentemente alvo de discriminação e violência simplesmente por existirem. É fundamental que essas questões sejam amplamente debatidas e abordadas, uma vez que elas violam os tratados internacionais de direitos humanos que o país se comprometeu a respeitar. 

Para além disso, o encarceramento em massa de pessoas é objeto de pesquisas e estudos nos diversos segmentos das ciências, porque a integridade física e psicológica do indivíduo mantido em cárcere representa possibilidade de graves violações. Nesse sentido, o Brasil ocupa um lugar de destaque no cenário mundial, atualmente liderado pelos Estados Unidos (EUA): 

Com 335 pessoas encarceradas a cada 100 mil, o Brasil tem taxa de aprisionamento superior à maioria dos países do mundo. É a 26ª maior média entre 222 países/territórios, segundo a ‘World Prison Brief’, base de dados da Universidade de Londres.

(VELASCO; REIS, 2019)

O ambiente do cárcere, caracterizado pela superlotação e completa insalubridade, como os encontrados nos presídios brasileiros, em especial, podem fomentar distúrbios emocionais. Essa análise coaduna com a postura assumida por Montesquieu (2000, p. 175), ao assinalar que “os juízes da nação são apenas a boca que pronuncia as palavras da lei; são seres inanimados que não podem moderar nem sua força, nem seu rigor.” 

No mundo contemporâneo, essa relevância ganhou contornos ainda mais delineados, evidenciando fatores inerentes à composição das penalidades, que antecedem a letra fria da lei. Foucault (1987, p. 13) destaca que: 

A punição vai-se tornando, pois, a parte mais velada do processo penal, provocando várias consequências: deixa o campo da percepção quase diária e entra no da consciência abstrata; sua eficácia é atribuída à sua fatalidade não à sua intensidade visível; a certeza de ser punido é que deve desviar o homem do crime e não mais o abominável teatro; a mecânica exemplar da punição muda as engrenagens. Por essa razão, a justiça não mais assume publicamente a parte de violência que está ligada a seu exercício. O fato de ela matar ou ferir já não é mais a glorificação de sua força, mas um elemento intrínseco a ela que ela é obrigada a tolerar e muito lhe custa ter que impor. 

Em outras palavras, para satisfazer o sistema jurídico-penal deve-se ir além do corpo físico. É preciso espalhar-se para diversos setores, transpassando assim a esfera física e preenchendo espaços psicológicos e emocionais. Com essas ações, consegue-se atingir objetivos outrora não conquistados pelos suplícios, ou seja, o ato de punir precisa ser perene e incutido no ser social, como uma sombra que paira permanentemente, tendo como função primordial a coerção fundamentada no medo. Garantir isso é o passaporte para manter a “ordem social”. 

Contudo, para aqueles que assumem a sua identidade sexual como diversa de seu sexo biológico, as consequências tendem a ser mais severas. Além do cárcere essas pessoas precisam suportar abusos diversos, pois essas são encaminhadas para presídios masculinos, onde são submetidas às mais diversas formas de agressão à sua dignidade e à integridade. Além disso, são abandonadas pelos familiares, sendo duplamente rejeitadas pela sociedade. Com isso, pagam preços bem maiores que o simples cumprimento de suas sentenças penais condenatórias. São literalmente abandonadas pelo conjunto da sociedade e não podem contar com a tutela do Estado, tendo em vista que o ambiente prisional é totalmente transgressor, não fornecendo condições favoráveis à sobrevivência. 

Outrossim, o abandono familiar e a carência afetiva podem ser mais gravosos que todo os outros atentados sofridos, uma vez que compromete toda a psique do indivíduo, dificultando ainda mais as possibilidades de reinserção desse apenado na sociedade. Por conta disso, mesmo que sobreviva ao cárcere – que possui um tempo para ir a termo – as consequências advindas dele se perpetuam no tempo, podendo se mostrar irreversíveis. 

Dessa forma, deve-se observar que quando a justiça resolve punir a individualidade do ser, a exemplo de questões íntimas que resvalam no campo sexual, insere-se em um domínio que deveria ser inviolável. Invade-se uma esfera que se encontra resguardada pelo princípio da dignidade humana, defendido pela própria Constituição Federal do Brasil (BRASIL, 1988). No entanto, a individualidade e, por conseguinte, a dignidade desaparecem mediante a aplicação das sentenças. 

Deve-se considerar que as irregularidades e crueldades por trás da seara penal produzem um ônus, que recai sobre toda a conjuntura social. Não obstante, as penas não podem exceder a porção mínima de liberdade depositada em cada indivíduo, consoante Beccaria (2002, p. 19): 

[…] a reunião de todas essas pequenas porções de liberdade constitui o fundamento do direito de punir. Todo exercício de poder que desde fundamento de afastar constitui abuso e não justiça; é um poder de fato e não de direito; constitui usurpação e jamais um poder legítimo. 

Se faz mister perceber as mazelas causadas nas mulheres trans pelo encarceramento, e mostrar que tais agruras são frutos de um tratamento penal preconceituoso. Elas sofrem todo um estigma social, até mesmo sem cometer crimes. Assim, essa parcela da população, que foge do padrão imposto pelo coletivo conservador, sofre uma carga de hostilidades, que atingem o domínio físico e emocional. Destarte, esse público se mostra duplamente espoliado, visto que padece com ataques transfóbicos, e ainda tem seus direitos constantemente negados. 

O conjunto de violências destacado supra, molda o quadro constatado em diversos países, sobretudo no Brasil, conforme se depreende de dados apresentados pela Organização Não Governamental (ONG) Transrespect Versus Transphobia (TRANSRESPECT VERSUS TRANSPHOBIA, 2014). Nesse viés, os indivíduos que compõem o grupo, por não dispor do respaldo social assegurado pela legislação pátria — consoante os acordos que assegurem os direitos humanos, dos quais o Brasil é signatário — tornam-se vulneráveis. Ademais, conforme Lima, Gitirana e Sá (2022), em janeiro de 2020, o Departamento Penitenciário Nacional (Depen) solicitou às unidades da federação um levantamento contendo informações sobre a população LGBTQI+ nos presídios. De acordo com esses dados, publicados em março de 2020, há por volta de 248 mulheres trans encarceradas no território nacional. 

 Embora a Constituição Federal estabeleça um conjunto de garantias que deveriam ser gozadas por todas as pessoas, para essas mulheres transexuais, na prática, isso não se consolida, pois essa proteção se encontra apenas enquanto uma teoria, sem a devida correspondência no plano prático, que mesmo após muitos anos da sua proibição ainda prevalece a aplicação dos suplícios. 

Assim, é perceptível que a própria administração pública se encarrega de criar mecanismos de separação e exclusão, nos quais essa massa é hostilizada e depreciada, com o intuito de manter esse estrato social espoliado distante.  

 Afinal, por conta da conjuntura estabelecida, essas pessoas tendem a ser espoliadas, por vezes, apenas em razão da sua existência. Sendo assim, se faz preciso abrir o debate para essas questões que ferem os preceitos dos tratados internacionais em defesa dos direitos humanos, dos quais o Brasil é signatário. No contexto hodierno, esse problema precisa ser discutido de forma abrangente, porque emerge de uma adversidade relacionada à condição de gênero, associada a minorias, mas fundamentalmente arraigada no desprezo a vidas humanas. 

O Ministério Público, é, segundo Souza (2017, p. 53-54):  

[…] constitucionalmente, uma instituição de garantia destinada à tutela dos direitos fundamentais conforme a Constituição Federal do Brasil (1998) e, por conseguinte, verdadeira parte imparcial no processo penal, autorizado a postular em favor do acusado e detentor da missão de buscar sempre a correta aplicação da lei. Cuida-se de tese decididamente garantista, já sustentada, inclusive, por Luigi Ferrajoli, o grande sistematizador da teoria do garantismo penal1

Nesse sentido, em qualquer modelo prisional e em todos os sistemas prisionais, os direitos dos presos fazem parte da administração penal. Esses direitos decorrem de garantias que, em última instância, são rastreáveis à Constituição Federal e estão em consonância com os direitos fundamentais dos presos previstos em diversos documentos internacionais. As execuções penais devem respeitar os direitos fundamentais dos presos garantidos pela Constituição Federal.  

Neste rol de direitos, encontram-se os direitos do recluso, que não são específicos deste, mas que o amparam, como resulta da enumeração básica do art. 5º da Constituição Federal Brasileira (BRASIL, 1988), inclusive direitos processuais. O fato de cumprir pena na prisão não significa que o preso tenha perdido o direito de estar livre de ameaças de violência, tortura, maus-tratos e outros crimes ou de estar exposto a riscos à sua saúde física e mental. 

Sob essa perspectiva, é, portanto, papel também do Ministério Público usar de suas atribuições de modo que suas atividades sejam efetivas na vigilância quanto aos abusos e violações de direitos das mulheres transexuais que são postas em encarceramento. 

Nesse contexto, é essencial compreender que a luta contra o encarceramento em massa e pelos direitos humanos das mulheres transexuais não deve ficar restrita apenas ao sistema penitenciário. Em vez disso, requer uma mudança na estrutura e uma abordagem holística que incorpora fatores psicológicos, sociológicos e filosóficos. Afinal, a longo prazo, é necessária uma reforma profunda do sistema prisional, implementando políticas que respeitem a diversidade, provendo treinamento adequado para os agentes penitenciários e criando espaços seguros e inclusivos para os presidiários. Pois para combater a transfobia, é importante promover a conscientização e o diálogo público sobre questões de gênero e direitos humanos. 

Afinal, somente por meio de uma abordagem multifacetada e de uma determinação coletiva para enfrentar os abusos dos direitos humanos no sistema penal, será possível edificar um país mais justo e respeitoso para todas as pessoas. Por fim, cabe salientar a garantia da dignidade e dos direitos fundamentais das mulheres trans, dentro e fora do sistema prisional não é apenas uma obrigação legal, mas também um imperativo moral que deve ser colocado em prática sem demora. 

Referências 

BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: CD, 2002, p.19. 

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2016]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 24 maio 2023. 

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis (RJ): Vozes, 1987. 

LIMA, Francielle Elisabet Nogueira; GITIRANA, Julia Heliodoro Souza; SÁ, Priscilla Placha. A segregação do corpo travesti no cistema prisional brasileiro: comentários à Medida Cautelar na ADPF 527. Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, v. 13, n. 2, p.1136-1167, 2022. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rdp/a/YXYPvbNS9ZpY9wj9hMMdvNy/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 24 maio 2023. 

MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. O espírito das leis. Tradução de Cristina Murachco. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 175. 

SOUZA, Alexander Araujo de. Ainda e Sempre a Imparcialidade do Ministério Público no Processo Penal: uma Tese Decididamente Garantista. Revista do Ministério Público, n. 63, p. 49-54, jan./mar., 2017. 

TRANSRESPECT VERSUS TRANSPHOBIA. Trans Murder Monitoring results: TMM IDAHOT 2014 Update. Disponível em: http://www.transrespect-transphobia.org/en/tvtproject/tmm-results/idahot-2014.htm. Acesso em: 24 maio 2023.  

VELASCO, Clara; REIS, Thiago. Com 335 pessoas encarceradas a cada 100 mil, Brasil tem taxa de aprisionamento superior à maioria dos países do mundo. G1. 28 abr. 2019. Disponível em: https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2019/04/28/com-335-pessoas-encarceradas-a-cada-100-mil-brasil-tem-taxa-de-aprisionamento-superior-a-maioria-dos-paises-do-mundo.ghtml. Acesso em: 30 mar. 2023.

Notas

1 “L. FERRAJOLI, referindo-se à imparcialidade seja do Juiz, seja do Ministério Público, reconhece o ‘carattere tendenzialmente cognitivo dell’azione del pubblico ministero come della giurisdizione, legittimate entrambe dal corretto e imparziale accertamento del vero, il quale può essere solo distorto e deformato da vincoli di dipendenza o da condizionamenti politici’. Complementa o maestro FERRAJOLI afirmando que, em razão, da sua imparcialidade, o “pubblico ministero deve essere in grado di svolgere e concludere le proprie indagini o controlli indipendentemente dal consenso della maggioranza o del governo’. Acrescenta, conclusivamente, quanto ao tema: ‘Per questo, non solo i giudici, ma anche i pubblici ministeri non devono essere elettivi, o peggio dipendenti dal potere esecutivo, o comunque integrati nel sistema politico: perché la loro legittimazione non si fonda sul consenso elettorale, bensì sull’applicazione della legge e sul corretto accertamento del vero, anche contro la volontà e gli umori delle maggioranze’ (Per un pubblico ministero come istituzione di garanzia, in: Questione giustizia. Nº 1. Milano: FrancoAngeli, 2012, p. 41-43).” (SOUZA, 2017, p. 54). 

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