A CONEXÃO ENTRE PARIDADE DE GÊNERO, DADOS E ATUAÇÃO INSTITUCIONAL

Este texto é uma colaboração das mulheres da UFPCI:

O que se torna o “fiel da balança” é a existência humana: é ela que “faz surgir no mundo os valores de acordo com os quais ela poderá julgar os empreendimentos em que se engajará (Beauvoir, 2005 p. 19). 

Nunca existiram tantos dados, afinal, estamos em pleno Big Data, mas existem cientistas o bastante para todos esses dados? Sim? Ora, o que podemos falar é que 81,4% dos cientistas de dados são homensi e nas profissões ligadas à área de tecnologia, mulheres estão em número muito menor, em todas as posições, especialmente quando se trata de posições de liderança. 

Esse é um cenário que se repete. Em 2018, quando produziu um estudo denominado Cenários, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) soube que o Ministério Público era composto por 5.114 membros do sexo feminino e 7.897 membros do sexo masculino, compondo uma proporção de 39% de mulheres e 61% de homens, com apenas 18% das lideranças na instituição exercidas por mulheres. É bom repetir esse número para deixar claro: 82% dos cargos de liderança no MP eram exercidos por homens e apenas 18% tinham mulheres à frente.ii 

Em 2023, pesquisa que trata do perfil étnico-racial do Ministério Público brasileiro verificou que entre membros e membras, existem 13.008 membros e ainda há maioria de homens, com eles correspondendo a 60,9%. E quando se faz um recorte racial desses números, percebe-se que pessoas brancas correspondem a 81,9% dos membros do MP. E que entre os poucos membros negros e negras, 10,3% são homens e apenas 5,4% são mulheres, mostrando como a situação se configura ainda mais negativa quando se está tratando da participação da mulher negra no Ministério Públicoiii.  

Ora, mas cientistas são cientistas, promotores são promotores, você pode pensar. Pouco importa que sejam mulheres ou homens… O que importa é que façam seu trabalho… 

Acontece que não é bem assim… a igualdade de gênero, garantida constitucionalmente, não se trata apenas de palavras e de uma representatividade vazia. Ela é necessária e precisa de muitas ações para efetivar a igualdade material, o que também é verdade na área de tecnologia e no cerne da nossa instituição.  

Mas aí você pode se perguntar: por que isso é importante? Qual a diferença entre ter ou não mulheres atuando? Não somos nós que estamos debatendo uma questão que constrói desigualdades e diferenças?  

Para responder todos esses questionamentos, é preciso entender a importância da representatividade, não apenas de forma singular, mas coletivamente. E para discutir essa importância e a necessidade da igualdade de gênero, escolhe-se debater um pequeno frame de um mundo de experiências, mas um frame que diz respeito diretamente ao trabalho do Ministério Público: a interpretação jurídica.  

A construção da interpretação da norma, material de trabalho dos intérpretes jurídicos, é uma construção intersubjetiva. Acontece, como ensina Beauvoir, que a intersubjetividade se garante na vivência e não no cogito, pois é a vida, a experiência que oferece a construção da intersubjetividade. A questão é que o solo do sentido é plural, a experiência da significação é plural e assim, a imanência e a transcendência são entendidos como movimentos existenciais: há a minha vida, há a minha luta, e existem meus desejos, e tudo isso se constrói e se dá em um mundo coletivo, em que os esforços na busca de sentido são um trabalho nosso, um trabalho histórico, um trabalho de vontade individual, decerto, mas de um indivíduo que vive em meio a uma construção de valores que não pertence apenas a esse indivíduo intérprete e seu penso, logo existo, afinal, onde você existe?  

A experiência do absoluto ético só pode se dar fora da condição humana, e, não sendo a condição humana algo que possa ser ultrapassado, a construção da ética não pode prescindir da ambiguidade, do paradoxo e de vivências plurais que ajudam a construir um sentido complexo e conectado com a realidadeiv

Certo. E o que isso tem a ver com dados, você está se perguntando… 

Ora, tudo. Estamos afirmando que representatividade traz consequências positivas para o próprio trabalho – no caso, a interpretação jurídicav  ̶, mas essa é uma questão também significativa para outros universos profissionais, como o mundo de dados. Segundo Ana Claudia Batista, cientista de dados da UFPCI, “mulheres são meticulosas e excelentes no trabalho, enxergando e traduzindo situações relevantes, dando importância a assuntos que frequentemente são obliterados na sociedade”.  

Simone de Beauvoir com Sylvie Le Bon

O relatório da UNESCO intitulado Decifrar o código: educação de meninas e mulheres em ciências, tecnologia, engenharia e matemática (STEM)vi revela a disparidade entre a média percentual mundial de meninos e meninas matriculados na educação superior na área de tecnologia da informação e comunicação, vez que o percentual de matrícula entre os meninos é cerca de 2,6 vezes o percentual de matrículas entre as meninas. Essa razão só perde para o campo de estudo em engenharia produção industrial e construção, com 2,7 vezes mais meninos que meninas matriculadas, conforme Figura 4 do relatório.   

Fonte: UNESCO (2018, p. 20)

 Já no Brasil, de acordo com informações do Censo da Educação Superior 2022VII o percentual de mulheres matriculadas em cursos presenciais de graduação em Computação e Tecnologias da Informação e Comunicação era de apenas 15,3%, revelando que a razão entre o percentual de matrículas de meninos e meninas na área de TIC é de 5,5 superando em duas vezes a razão mundial. Essa e outras informações podem ser observadas no gráfico abaixo que é resultado do Censo.

Fonte: INEP (2023, p. 71)

 Para o CNMP, a necessidade da representatividade feminina trouxe a criação do Grupo de Trabalho Representatividade Feminina, instituído pela Portaria CNMP—PRESI nº 55/2023, e que “[…] visa elaborar, legítima e democraticamente, uma pauta de atuação e propor alterações normativas e medidas alternativas a fim de avançar na representatividade feminina em espaços da administração superior dos Ministérios Públicos em seus diversos ramos“viii. Também o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) tem tomado diversas medidas para promover a igualdade de gênero no Poder Judiciário, incluindo a recente aprovação da regra de gênero para juízes e juízasix

Há um fundamento constitucional para todas essas mudanças, vez que a Magna Carta de 1988 representa um esforço singular na direção da igualdade de gênero, pois, conforme afirma Piovesan, representa um dos mais abrangentes e pormenorizados documentos sobre direitos humanos jamais adotado no Brasil, tendo assegurado a participação popular em seu processo de elaboração, incluindo a Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes, documento que contempla as principais reivindicações dos movimentos de mulheresx

Nesse documento, histórico e emocionante, as mulheres brasileiras escrevem para a Assembleia Nacional Constituinte avisando que “Para nós, mulheres, o exercício pleno da cidadania significa sim o direito à representação, à voz e à vez na vida pública, mas implica, ao mesmo tempo, a dignidade na vida cotidiana, que a lei pode inspirar e deve assegurar […]”xi.  

Exigindo seus direitos, essas mulheres travaram a boa luta, uma luta que ainda está viva e precisa de cada uma de nós, pois se trata de uma luta em que há um preceito constitucional em jogo, também presente quando se fala na necessidade da maior presença feminina no trabalho com dados: 

Até 1988, as constituições brasileiras continham preceitos genéricos no tocante à não discriminação, encerrando as liberdades civis como garantias inalienáveis. A igualdade era meramente formal, ausentes dispositivos que implicassem a efetividade dos princípios. Com o texto atual, verifica-se, já no Preâmbulo, nova mentalidade, no que versado objetivo da sociedade em construir um Estado Democrático e dotá-lo dos instrumentos necessários a assegurar “o exercício de direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometidas na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias”xii

Sobre o assunto, vale dizer que o decreto nº 4.377, de 13 de setembro de 2002, que promulga a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a Mulher, de 1979, define que os Estados Partes condenam toda a forma de discriminação contra a mulher e adotarão uma política destinada a eliminar a discriminação, adotando as medidas adequadas para tantoxiii. Notadamente em seu art. 5º, a referida Convenção determina que os Estados-Partes tornarão todas as medidas apropriadas para: 

a) Modificar os padrões socioculturais de conduta de homens e mulheres, com vistas a alcançar a eliminação dos preconceitos e práticas consuetudinárias e de qualquer outra índole que estejam baseados na ideia da inferioridade ou superioridade de qualquer dos sexos ou em funções estereotipadas de homens e mulheres.

Funções estereotipadas, como aquelas que fazem as pessoas lembrarem de cientistas de dados como homens ou de que apenas homens têm força para fazer um Júri ou enfrentar uma audiência pública em um grande conflito. Enfim, padrões socioculturais que estão arraigados de tal forma que não são questionados, mas podem ser contestados pela atividade ministerial.    

Compreendendo que esse é um problema que se resolve desde cedo, em seu art. 10 a referida convenção determina que os Estados adotarão todas as medidas apropriadas para eliminar a discriminação contra a mulher e assegurar a igualdade de direitos com o homem na esfera da educação e em particular para assegurar condições de igualdade entre homens e mulheres: 

a) As mesmas condições de orientação em matéria de carreiras e capacitação profissional, acesso aos estudos e obtenção de diplomas nas instituições de ensino de todas as categorias, tanto em zonas rurais como urbanas; essa igualdade deverá ser assegurada na educação pré-escolar, geral, técnica e profissional, incluída a educação técnica superior, assim como todos os tipos de capacitação profissional; […] 

 

Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes — Acervo Câmara dos Deputados 

Dados estão presentes em pesquisas de jurimetria, pesquisas institucionais, na sugestão de pontos de atenção por meio de indicadores, em pesquisas de vitimologia, apenas para citar algumas possibilidades. O trabalho é amplo e há necessidade da habilidade e conhecimento das cientistas de dados e juristas mulheres para ser desenvolvido com excelência, garantindo-se a intersubjetividade necessária para a interpretação e construção argumentativa.  

Em suma, é indispensável que existam mulheres falando sobre dados, entendendo a análise de dados, garantindo a existência de pesquisas com dados, prestando atenção em dados quando fazem denúncias e investigações, coletando e analisando dados de interesse, enfim, as possibilidades são infinitas, desde que o objetivo é uma atuação democrática respeitosa da paridade de gênero, garantindo-se não somente a ocupação de espaços de poder, mas mudanças concretas na atuação institucional. 

Veja-se, como exemplos do trabalho com dados na interpretação jurídica voltada à atuação do MP, os trabalhos desenvolvidos na UFPCI atualmente. Hoje desenvolvemos pesquisas com dados internos sobre resolutividade e planejamento estratégico, orientada pelas promotoras Anna Karina Omena Vasconcellos Trennepohl e Thays Rabelo da Costa, explorando o PAPJ, um instrumento considerado pioneiro pelo CNMP e que foi desenvolvido pelo MPBA. 

Na mesma linha, também estamos produzindo uma pesquisa ampla de mapeamento da jurisprudência para entender métodos investigativos de sucesso e o painel de mudanças jurisprudenciais pós-2021 em ações de improbidade administrativa, orientada pela promotora Alicia Violeta Botelho S Passeggi

E não menos relevante é a pesquisa verificando a atuação da 4ª Promotora de Justiça Especializada na salvaguarda dos direitos da população LGBTQIAP+, que representa iniciativa pioneira para o Ministério Público brasileiro, pois se trata da primeira promotoria de Justiça do Brasil especializada na defesa desse grupo populacional, orientada pela promotora Márcia Teixeira. Todas são pesquisas em que existe uma forte presença feminina em diversos estratos. 

Outro exemplo muito importante do poder dos dados na atuação ministerial está sendo oferecido pelo Ministério Público de Minas Gerais, que lançou iniciativa pioneira para trabalhar com dados no combate à violência contra mulheres, destacando a necessidade de informações para “[…] compreender o contexto em que as agressões acontecem, os perfis dos autores, das vítimas, as regiões em que há mais risco de feminicídios, entre outros”xiv. Isso porque, como corretamente aponta a coordenadora do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (CAOVD) do Ministério Público do Estado de Minas Gerais (MPMG), a promotora de Justiça Patrícia Habkouk, quanto mais informação, mais se torna possível garantir políticas públicas e segurança para mulheres e meninas. Essa pesquisa vem sendo acompanhada de perto por nós aqui da UFPCI.  

Enfim, existe um arsenal normativo, bem fundamentado constitucionalmente, que garante medidas para a presença feminina e a igualdade de gênero. E nosso trabalho, como uma equipe de mulheres pesquisadoras aqui na UFPCI, pretende municiar o Ministério Público de informação e conhecimento de qualidade para a tomada de ações que garantam que as palavras da Magna Carta sejam concretizadas. É por meio da presença de cada uma de nós que essa realização se fará concreta, garantindo-se que a luta das mulheres siga vibrante e presente, com resultados constantes, já que como avisava Beauvoir, essa é uma luta que não vai acabar, cabendo a cada uma de nós estar vigilante durante nossas vidas.

Curiosidades

Como exemplos de mulheres que se destacaram na área de ciências de dados, temos as três cientistas negras Mary Jackson, Katherine Johnson e Dorothy Vaughan. Além do machismo, as três mulheres precisaram enfrentar o racismo dentro do ambiente de trabalho, durante o período de segregação racial nos EUA. Conhecidas como “computadores humanos” ou “computadoras”, elas realizavam cálculos complexos manualmente, já que os computadores eletrônicos ainda não existiam. Na agência espacial NASA, as cientistas desempenharam um papel fundamental nos testes de aeronaves da 2ª Guerra Mundial, na pesquisa de voos supersônicos e no lançamento das sondas Voyager para explorar o Sistema Solar. Além disso, contribuíram significativamente para o sucesso do pouso que os astronautas do Apollo 11 fizeram na Lua em 1969.  

Fonte: Newport This Week (2017).

Mary Jackson se graduou em Matemática e Ciências Físicas no Hampton Institute em 1942. Iniciou sua carreira como computadora na divisão West Area Computers e, após frequentar aulas de engenharia, tornou-se a primeira engenheira negra da NASA em 1958.  

Katherine Johnson foi uma cientista estadunidense especializada em matemática e física. Suas contribuições foram essenciais para a aeronáutica e exploração espacial dos Estados Unidos, especialmente no uso da computação na NASA.  

Dorothy Vaughan se formou em Matemática na Wilberforce University em 1929. Trabalhou na National Advisory Committee for Aeronautics, antecessora da NASA, e em 1949 tornou-se a primeira mulher negra a liderar um departamento na agência. Após se aposentar da NASA em 1971, Dorothy continuou a promover a inclusão das mulheres nas áreas de ciência, tecnologia, engenharia e matemática (STEM). 

Enedina Alves Marques foi uma pioneira da engenharia brasileira. Em 1945, ela se formou em Engenharia Civil pela Universidade Federal do Paraná, fazendo história como a primeira mulher a se graduar em engenharia no estado e a primeira engenheira negra do Brasil. Contribuiu significativamente em projetos de grande porte, como o levantamento topográfico e a construção da Usina Capivari-Cachoeira, a maior hidrelétrica subterrânea do Sul do país. Seu trabalho foi fundamental para aprimorar o aproveitamento hídrico dos rios Capivari, Cachoeira e Iguaçu, além de desempenhar um papel crucial na elaboração do Plano Hidrelétrico do Paraná. Atualmente, seu nome é celebrado no Livro do Mérito do Sistema Confea/Crea.

Fonte: Acervo Gazeta do Povo, domínio público.

A doutora Sonia Guimarães, graduada em física pela University of Manchester Institute of Science and Technology, é parte do corpo docente do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA). Seu foco de pesquisa está na área de física aplicada, especialmente nas propriedades eletrônicas de ligas semicondutoras cultivadas epitaxialmente, um campo crucial para a tecnologia de celulares. Além disso, é responsável por estudos avançados em sensores de radiação infravermelha. Ela foi a primeira mulher negra do Brasil a conquistar o título de doutora em Física e a primeira a ministrar aulas no ITA. Iniciou seu trabalho na instituição em 1993, época em que o ITA não admitia sequer estudantes do sexo feminino.

Fonte: Habitability (2022).

Referências

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