A HOMOFOBIA E A LEI DO RACISMO: REFLEXÕES DE UM DISPOSITIVO ANTIDISCRIMINATÓRIO EM UMA SOCIEDADE MARCADA PELO PRECONCEITO

Bruno Silva 

Especialista em Relações Internacionais, na Faculdade Nova de Lisboa (2017). Integra o Grupo de Estudo e Pesquisa sobre Racismo do Ministério Público do Estado da Bahia, liderado pelos Promotores de Justiça Lívia Santana Vaz e Saulo Mattos.

O Brasil é o país no mundo que mais mata indivíduos da comunidade LGBT+ (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais). Apesar da imensa quantidade de pesquisas que apontam este dado, o Brasil continua se eximindo de coletar esse tipo de informação de modo oficial.

Dados do Observatório de Mortes e Violências contra LGBT+ dão conta de que, em 2020, 237 LGBT+ tiveram morte violenta no Brasil, vítimas da homotransfobia: 224 homicídios (94,5%) e 13 suicídios (5,5%). Esse relatório em 2021 concluiu que o quantitativo de mortes neste segmento social foi de 316, com aumento de 33,33% em relação ao ano anterior.

Mesmo com este expressivo e histórico massacre da comunidade LGBT+, e ainda que a Constituição de 1988 (BRASIL, 1988) institua a garantia de direitos a todos os cidadãos, apenas em 2002 que a promoção dos direitos aos LGBT+ ganhou as suas primeiras expressões. Com o advento do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH2), alguns direitos para a população LGBT+ foram colocados em pauta, ainda que de maneira precária ou insipiente.

Na tentativa de suprir esta ausência de formulações legislativas direcionadas ao combate de condutas delituosas promovidas contra o segmento LGBT+, o Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu, em 13 de junho de 2019, o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) (STF, 2019), aberta em 19 de dezembro de 2013 pelo Partido Popular.

Ainda que com atraso de 6 anos para formular este decisório, a equiparação do STF das condutas delitivas contra a população LGBT+ ao crime de racismo nos propõe algumas reflexões sobre como o Estado brasileiro continua falho em prevenir a ocorrência de graves violações a alguns segmentos sociais.

O crime de homotransfobia nunca é um crime comum contra um indivíduo. Isso porque esse crime, em linhas gerais, é a exacerbação da discriminação social contra um segmento ou uma parcela da população por razões intimamente preconceituosas.

A discriminação que tem por base a orientação sexual e a identidade de gênero advém do tratamento ainda machista e patriarcal conferido pela sociedade brasileira às afetividades e identidades diversas do senso comum, bem como uma hierarquização e estigmatização das mentalidades divergentes. O preconceito, de cunho homotransfóbico, portanto, tem origens no sexismo e na demarcação dos papéis de gênero da mulher e do homem na sociedade.

Entretanto, se o preconceito é uma perspectiva íntima e enviesada, a discriminação é a expressão deste preconceito, seja de modo muito velado, seja na forma da violência e outras violações exacerbadas. Logo, criminalizar a homotransfobia é uma declaração do Estado de não tolerar posturas desrespeitosas a este segmento.

Considerando isso, apenas em 2019, no sentido de abranger essas violações à população LGBT+ em um diploma legislativo único, como uma forma a ser combatida pelo Direito Penal Antidiscriminatório, junto às posturas danosas com fundamento sexista, de cunho xenofóbico e/ou religioso é que a referida equiparação ocorreu. Esta equiparação, portanto, importa na expressão de que o Estado deverá punir condutas homotransfóbicas, aplicando o dever de proporcionalidade nestas ações.

Esta decisão do STF significou dizer que, em situações criminais de homotransfobia, haja aplicabilidade do dispositivo de Lei. nº 7.716/1989 (crimes em razão de raça ou de cor) (BRASIL, 1989), e também possibilite que as razões delitivas originadas na discriminação negativa à orientação sexual da vítima e/ou aversão a sua identidade de gênero possam ser reconhecidas como hipóteses qualificadoras nos crimes de homicídio, enquadrando o fato típico desta natureza também como crime por motivo torpe, conforme art. 121, § 2º, inc. I, do Código Penal.

Entre comemorações e insatisfações, tanto dentro do movimento LGBT+, quanto nos demais grupos sociais, pode-se reconhecer o avanço nesta tipificação de condutas lesivas a estes sujeitos de direito que vivem mal retratados, carentes de políticas públicas favoráveis ao seu segmento, bem como vítimas do apagamento ou minimização de suas pautas, demandas e necessidades.

Se por um lado, a equiparação da LGBTfobia ao crime de racismo ratifica a necessidade de identificar, retratar, promover a integral proteção às pessoas vitimadas por exteriorizações, estigmatizações, inferiorizações em razão de sua orientação sexual e identidade de gênero, por outro lado não podemos perder de vista, à luz das reflexões sociológicas do Direito, que a “mão”, neste âmbito, escolhido pelo Estado para esta proteção, a “mão” que corrige, a “mão” penal, é também conhecidamente como a “garra” nefasta da violência institucional, que baliza com sua seletividade, controle social, discriminação, a operação de apagar o contingente social indesejado (o pobre, o preto, o gay, o marginalizado).

Não é cabível, portanto, se deslumbrar com a equiparação promovida pelo STF ao emitir poder ao aparato social de controle do Estado para inibir coercitivamente posturas LGBTfóbicas. Isto porque o controle punitivo do Estado opera segundo a mesma lógica que os dispositivos penais de combate ao racismo já experimentam desde 1989, isto é subordinado às afetações, propositadas ou não, dos operadores do Direito que, incorporados pelo mito de democracia racial, apercebem ou não a existência do crime racial.

A hermenêutica jurídica e a aplicação da lei no sistema jurídico nunca se firmam de modo neutro. A interpretação é um espaço de tensões e distensões, contrariedades e controvérsias, além de outras disputas de cunho ideológico que, na prática, podem desoperacionalizar o uso da lei, para as causas que foram criadas. Isso significa dizer que, de modo automático, as rotinas judiciais não irão adotar, e a sociedade não irá assimilar, as tutelas protegidas pela decisão do STF.

Na conjuntura brasileira, essa equiparação esbarra nas culturas policial e jurisdicional excludentes, que reforçam os padrões normativos e logram confirmações perversas e aversas à vida fora da normatividade.

No cenário brasileiro de igualdade formal, a experiência de gays, bissexuais, travestis e transsexuais recebe, diariamente, o tratamento de invisibilização de suas identidades, dificuldades, problemáticas, observando os seus corpos serem relegados aos modelos patológicos e submetidos à ótica restritiva do sexo biológico como destino irrevogável dos indivíduos (LEITE JR., 2011).

Discutindo este tema, nasce em 1980 a teoria Queer, desenvolvida por teóricos estadunidenses, que confronta diretamente esta leitura de normatização social dos corpos e das vivências trans, gays e bissexuais e se contrapõe ao aprisionamento das identidades LGBT+, à conformação de semânticas excludentes de gênero e de sexualidade, originadas na literatura médica e na história formal.

Segundo Butler (2001), forte precursora desta teoria, o gênero pode ser lido como um conjunto de símbolos e normas ritualizadas que encarnam ideais de masculinidade e feminilidade para atender a agenda machista, racista, patriarcal e burguesa das sociedades.

Essas compreensões estruturais de gênero e sexualidade são abordagens que formulam estereótipos, confirmam percepções negativas e configuram espaços de não justiça social para esta população.

É nessa encruzilhada de exclusão que se reúne a população LGBT+ e a população negra, onde a realidade é a precarização de suas vidas, reduções de suas índoles e a minimização de suas pautas, para o que a população conhece como “mimimi”.

A racionalidade dessa aproximação não é algo eventual ou episódico. Ao analisar a realidade social, tanto em suas demarcações sociais de acesso à justiça, a criminalização do corpo negro, a fetichização do corpo trans, o reducionismo da experiência gay a uma fase ou a alguma postura desviante, percebe-se que estes esforços semânticos estão postos em favor de uma máxima blindagem ao homem, branco, hétero e rico.

Na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 26 (ADO 26), de relatoria do ministro Celso de Mello, e no Mandado de Injunção (MI) 4733 esta aproximação fica mais explícita:

O conceito de racismo, compreendido em sua dimensão social, projeta-se para além de aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos, pois resulta, enquanto manifestação de poder, de uma construção de índole histórico-cultural motivada pelo objetivo de justificar a desigualdade e destinada ao controle ideológico, à dominação política, à subjugação social e à negação da alteridade, da dignidade e da humanidade daqueles que, por integrarem grupo vulnerável (LGBTI+) e por não pertencerem ao estamento que detém posição de hegemonia em uma dada estrutura social, são considerados estranhos e diferentes, degradados à condição de marginais do ordenamento jurídico, expostos, em consequência de odiosa inferiorização e de perversa estigmatização, a uma injusta e lesiva situação de exclusão do sistema geral de proteção do direito.

(STF, 2019).

Se o avanço da sociedade foi marcado por negações de direitos a esses dois grupos, pelo intento de violações ao povo preto, como a escravização, a inferiorização de suas vivências, assim como pela constante patologização das expressões de transgeneralidade, sempre delegando a esfera médica para solucionar o que é referido como problema. Não poderemos esperar, tranquila e mansamente, que o aparato social de Justiça do Estado promova a adequada aplicação do entendimento do STF.

Ao contrário, se essa decisão marca, mesmo com o carimbo perverso da justiça penal, uma trilha de visibilização e de maior proteção jurídica de pessoas gays, trans e bissexuais, essa conquista só resulta em um quociente benéfico de justiça social se a polícia estiver melhor preparada para receber, identificar e apurar flagrantes violações criminais com teor LGBTfóbico; se magistrados souberem operacionalizar e criminalizar ações e omissões, individuais ou coletivas, à comunidade trans ou gays, bem como se estes agentes atuarem comprometidos com o real combate das discriminações e violências físicas e psicológicas da comunidade LGBT+:

A discriminação por orientação sexual está associada a uma série de elementos que precisam ser individualmente discutidos. Primeiro, ela está baseada na homofobia, um tipo de comportamento discriminatório produto de condicionamentos culturais e também psicológicos. Encontra fundamento nos estigmas sobre homossexuais que circulam na sociedade, estereótipos que representam membros do grupo como predadores sexuais, como indivíduos moralmente degradados, como violadores da ordenação divina, como pessoas que se comportam contra a ordem natural. […] Assim, os estereótipos sobre homossexuais os representam como uma ameaça a unidade social, compreensão utilizada para promover a discriminação sistemática dos membros desse grupo.

(MOREIRA, 2020, p. 622-623).

Diante da marginalização, da exclusão educacional e laboral da população LGBT+, o Brasil por provocação do STF finalmente criminaliza situações de homotransfobia, delineando tratamento jurídico para o justiçamento dos infratores. Entretanto, esse dispositivo antidiscriminatório não alcança todas as formas de homofobia, haja visto que as violações podem ter um aspecto exacerbado (como a agressão ou a morte), mas também podem encarnar uma sutil aparência, como a seleção de um candidato heterossexual para uma vaga de emprego, diante de uma variedade de candidatos.

Podemos aludir que uma sociedade como o Brasil é repleta de contradições, pois essa sociedade que é a que mais sente a fetichização do corpo gay e trans, é também a que mais maltrata esta comunidade, incentivada pela tradição machista e sexista.

Pela experiência do dispositivo antirracista, refletimos também que a tinta penal não é suficiente para a repreensão do racismo, em suas variadas formas, posto que anos após a implantação do dispositivo penal da Lei do Racismo (Lei 7.716 de1989) (BRASIL, 1989) ainda vivemos um contexto de intensas atitudes racistas mais sutis ou mais gravosas na sociedade. A iniciativa, contudo, de ter um fundamento legal para mecanizar o ato de punir situações homofóbicas atende afirmativamente a parte de uma pauta da comunidade LGBT+.

Contudo, a atuação efetiva desse dispositivo se expressa pelo tratamento que os operadores da Justiça conferirem a ele para não recair na impunidade. É preciso se responsabilizar e se comprometer com as tutelas jurisdicionais da comunidade LGBT+ – para além do enquadramento criminal, é necessário que, em matéria de direitos humanos e políticas públicas, novos planos sejam traçados, e haja avanços na educação e no respeito à comunidade LGBT+ – para que o crime de homotransfobia não seja, ao fim, um crime passível de tantos óbices e sujeito a interpretação dos operadores da Justiça.

Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 25 out. 2022.

BRASIL. Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989. Define os crimes resultantes de raça ou de cor. Brasília, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7716.htm. Acesso em: 25 out. 2022.

BRASIL. Programa Nacional de Direitos Humanos – PNDH 3 – DECRETO Nº 7037, de 21 de dezembro de 2009. Brasília, 2009. Disponível em: https://www.geledes.org.br/programa-nacional-de-direitos-humanos-pndh-3-decreto-7-037-de-21-de-dezembro-de-2009/?amp=1&gclid=CjwKCAjwzY2bBhB6EiwAPpUpZipCqgGCS1x5Mx4qlyR_uvt0sRy9qwZ0D2XzVDDHA8PL34PG7Xp8pBoCsrQQAvD_BwE. Acesso em: 01 nov. 2022.

BURLAMAQUI, B. C. A Equiparação da Homotransfobia ao Racismo: Criminalização de Conduta por Raciocínio Jurídico. Revista Eletrônica OAB/RJ, Rio de Janeiro, v. 31, n. 1. Disponível em: http://revistaeletronica.oabrj.org.br. Acesso em 25 out. 2022.

BUTLER, J. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do sexo. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. In: LOURO, G. L. (org.). O corpo educado. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2001. p. 151-172.

CORREIA, C. S. O discurso que fundamenta a exclusão: uma análise crítica dos marcadores de ofensividade nos discursos racistas. 2014. 36 f., il. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Letras Português) — Universidade de Brasília, Brasília, 2014.

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IPEA. Atlas da Violência 2020. Disponível em: https://ipea.gov.br/atlasviolencia/. Acesso em: 04 ago. 2022.

LEITE JR., J. Nossos corpos também mudam: a invenção das categorias “travesti” e “transexual” no discurso científico. São Paulo: Annablume, 2011. 240 p.

MOREIRA, A. Tratado de direito antidiscriminatório. São Paulo: Editora Contracorrente, 2020.

PATRIARCHA, S. D. S. A criminalização da homofobia à luz da criminologia crítica. Seara Jurídica, v. 2, n. 12, 2014, p. 181-229.

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VAZ, L. M. S. S. et al. Persistência do racismo institucional no Brasil: perspectivas de enfrentamento pelo Ministério Público. In: JANUÁRIO, L. M.; SILVA, V. P. M.; PÁDUA, R. I. (org.). Tendências em Direitos Fundamentais: Possibilidades de Atuação do Ministério Público, v.1 / Conselho Nacional do Ministério Público. Brasília: CNMP, 2016, p. 99–130. 

Glossário

  • Hermenêutica: Do grego hermeneutikos, de hermeneus (intérprete), de Hermes ou Mercúrio, pelo latim hermeneutica (que interpreta ou que explica), é empregado na técnica jurídica para assinalar o meio ou modo por que se devem interpretar as leis, a fim de que se tenha delas o exato sentido ou o fiel pensamento do legislador.
    Na hermenêutica jurídica, assim, estão encerrados todos os princípios e regras que devam ser judiciosamente utilizados para a interpretação do texto legal.
    E esta interpretação não se restringe ao esclarecimento de pontos obscuros, mas a toda elucidação a respeito da exata compreensão da regra jurídica a ser aplicada aos fatos concretos.
    Fonte: SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 31. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. 
  • Óbice: Aquilo que obsta; empecilho; impedimento; obstáculo.
    Fonte: Aulete Digital

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