O PAPEL DO MINISTÉRIO PÚBLICO NO PROCESSO JUDICIAL DE GUARDA DE ANIMAIS DOMÉSTICOS 

Samory Pereira Santos 

Membro do Ministério Público do Estado da Bahia. Mestre em Direito. Especialista em Direito Constitucional. Autor de obras jurídicas.

Resumo 

A mudança do paradigma de família na pós-modernidade inaugurou o debate sobre a judicialização do conflito decorrente da guarda dos animais diante da dissolução das unidades familiares multiespécie. Embora a discussão material reste discutida no âmbito doutrinário e jurisprudencial, o papel do Ministério Público em disputas desta natureza não foi explorado. Com o fito de contribuir à discussão, foi realizada a análise das teorias que informam a relação jurídica envolvendo animais, aplicáveis ao debate de sua guarda, frente às normas que regulam a atuação do Ministério Público no processo civil. Como resultado da pesquisa, observou-se que a atuação ministerial estará condicionada ao fundamento normativo do debate sobre a guarda de animais domésticos e da própria natureza jurídica destes animais.   

Palavras-chave: Guarda de Animais; Processo Civil; Ministério Público. 

Abstract   

With the change of the family paradigm, the legal community debated the custody of animals at the courts. Although the material discussion remains discussed in the doctrinal and jurisprudential scope, the role of the Public Prosecutor’s Office in disputes of this nature has not been explored. In order to contribute to this debate, an analysis was conducted of the theories that inform the legal relationship involving animals, applicable to the debate of animal custody, and the rules that regulate the role of the Public Prosecutor’s Office in the civil procedure. As a result of the research, it was observed that the Public Prosecutor’s Office role will be conditioned to the normative rationale of the debate on the custody of domestic animals and the legal nature of these animals.    

Keywords: animal custody; Civil Procedure; Public Prosecutor’s Office. 

1 Introdução 

Contemporaneamente, tem-se observado uma alteração paradigmática do conceito de família, no âmbito social, com a inclusão de animais não humanos como parcela juridicamente relevante da família. Nessa esteira, surgiu a compreensão de família multiespécie, o que a doutrina assim conceitua como “aquelas famílias formadas por pessoas e seus animais de estimação (animais não humanos).” (DIAS; BELCHIOR, 2019, p. 71). 

Diante dessa realidade, não é surpreendente observar a existência de conflitos decorrentes da dissolução dessas unidades familiares. Nesse cenário, surge o debate material sobre o destino desses animais e quais seriam os critérios e metodologia adequada para o seu enfrentamento. A resposta doutrinária, ao tratar do tema, se revela conflituosa. Não há, em verdade, qualquer consenso quanto ao critério apropriado para a solução das disputas de guarda de animais após a dissolução da sociedade conjugal. Visualiza-se, com poucas variações essencialmente terminológicas, quatro critérios principais, quais sejam: 1) o da propriedade comum e particular; 2) o do melhor interesse do animal (SILVA, 2015); 3) o do melhor interesse da família (EASON, 2017); e 4) o sistema de pontuação (BRITTON, 2006). Sugeriu-se, ainda, uma proposta tridimensional, que leva em consideração diversos aspectos da relação entre seres humanos e os demais animais (SANTOS, 2020). 

Não obstante, ainda restam discussões de ordem processual sobre o tema, notadamente quanto à atuação do Ministério Público em eventual ação, que visa sedimentar o conflito resultado da dissolução da família multiespécie, em especial, a guarda de animais. Este trabalho pretende elaborar sobre o cabimento da atuação ministerial, seja ela de forma interveniente ou enquanto substituto processual e, nas hipóteses que autorizariam a atuação ministerial, qual seria a atribuição do promotor natural para atuar no feito.  

2 A atuação do Ministério Público no âmbito da ação de guarda de animais  

No âmbito processual civil, adota-se a classificação da atuação ministerial em três esferas: como parte, como auxiliar da parte ou como fiscal da lei (ALONSO, 2021). Importa salientar, neste contexto, que o perfil constitucional do Ministério Público é estabelecido no art. 127 da Constituição Federal de 1988, que lhe confere o papel de defensor da ordem jurídica, dos interesses sociais e individuais indisponíveis (BRASIL, 1988). Este comando normativo irradia seus efeitos em toda a esfera da atuação jurídica do Ministério Público brasileiro, inclusive no processo civil. 

A leitura constitucional da atuação, na qualidade de fiscal da ordem jurídica, do Ministério Público, no processo civil, é contextualizado dentro do debate sobre o parecerismo e a racionalização desta atuação nesta esfera do direito processual (GODINHO, 2015), tendo que haver justificativa constitucional para a atuação ministerial. Busca-se, neste trabalho, não criar mais uma hipótese de intervenção do Ministério Público, mas sim refletir se a referida hipótese é alinhada à defesa dos interesses jurídicos em debate em ações desta natureza. 

Feitas estas considerações, observa-se a necessidade de trazer a discussão sobre a atuação ministerial na guarda das crianças e dos adolescentes. Atenta-se que esta intervenção possui diversas fundamentações infralegais. A primeira delas é o do art. 178, II, do Código de Processo Civil (BRASIL, 2015), que torna obrigatória a atuação ministerial quando houver interesse de incapaz. Esta intervenção busca garantir que os interesses do incapaz não sejam olvidados, sobretudo diante do mau uso do múnus de representante ou assistente daquele que não é capaz juridicamente de exercer os atos da vida civil. 

A segunda previsão está no art. 698, caput, do Código de Processo Civil, em que, a contrario sensu, estabelece que o Ministério Público atuará em todas as ações de família em que houver a presença de incapaz – tendo sido acrescido também um parágrafo único que diz respeito à presença de pessoa que figure como vítima de violência doméstica (BRASIL, 2015). 

Em sua essência, portanto, a intervenção do Ministério Público em ações de guarda de crianças e adolescentes está umbilicalmente ligada à incapacidade (NEVES, 2017), seja absoluta ou relativa, daquela pessoa humana em especial estágio de desenvolvimento. 

A derradeira previsão é a do art. 202 do Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990), que prevê a atuação obrigatória, na qualidade de custos legis, do Ministério Público na defesa dos direitos e interesses das crianças e dos adolescentes. A guarda, nesse sentido, opera como forma de colocação destas pessoas em situação de desenvolvimento, conforme prevê o art. 33 e seguintes do Estatuto da Criança e do Adolescente. No âmbito constitucional, visualiza-se que esta ingerência do Estado na vida da família encontra previsão no art. 227, caput, da Carta de 1988, que atribui ao Estado o dever de assegurar à criança e ao adolescente o direito à dignidade e à convivência familiar (BRASIL, 1988). 

Conclui-se, assim, que a atuação ministerial na qualidade de custos legis decorre de uma questão subjetiva – isto é, a condição de pessoa incapaz da criança e do adolescente – e objetiva – no caso, o desrespeito a direito ou garantia previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente. 

Passar-se-á à análise da aplicabilidade da atuação do Ministério Público, primeiramente enquanto fiscal da ordem jurídica e, em segundo momento, como substituto processual dos animais. 

2.1 Da (im)possibilidade da atuação do Ministério Público como fiscal da lei em ações de guarda de animais 

Como se viu anteriormente, a atuação do Ministério Público em ações de guarda está fundamentalmente ligada à incapacidade da criança e do adolescente, na medida em que se autoriza na forma do art. 178, II, e no art. 698, caput, ambos do Código de Processo Civil (BRASIL, 2015). Embora se possa, em primeiro momento, atribuir à discussão da guarda de animais a um paralelo da guarda de crianças e de adolescentes, não é possível realizar a simples e acrítica importação da sistemática naquela adotada para os animais não humanos, posto que, conforme já explicitado, não há identidade principiológica e normogênica entre elas. 

A guarda de animais, em derradeiro, é fundada na noção de que os animais são seres permanentemente vulneráveis e que possuem uma especial relação com os seres humanos decorrentes de sua inserção enquanto animais domesticados ou domésticos no âmbito da família que os acolheu. A norma que autoriza este entendimento é, essencialmente, o art. 225, VII, da Constituição Federal (BRASIL, 1988), compreendendo-se que a ausência de regulação estatal sobre o fenômeno submeteria os animais a uma situação de crueldade. 

Pelo seu turno, a justificativa da atuação como custos legis do Ministério Público nas ações de guarda de mais precisa se fundamentar, em último ponto, no dispositivo constitucional supracitado. Embora uma discussão de elevada complexidade, é questão prejudicial a ela o debate sobre a natureza jurídica dos animais sob ponto de vista que supere sua coisificação – na medida em que guarda de animais sequer faz sentido sob ponto de vista de sua coisificação. A partir disso, pode-se compreender duas possibilidades: aquela aderindo à teoria, não tão bem aceita pela doutrina geral, de que os animais devem ser considerados juridicamente pessoas, e aquela que compreende que os animais são sujeitos de direitos, entretanto, direitos despersonificados, a exemplo dos condomínios. 

As consequências da adesão de uma ou outra teoria possuirá repercussões, como se verá, consideráveis quando da análise ministerial pela intervenção ou não em casos desta natureza. 

2.1.1 Os animais enquanto pessoas 

Entendimento extremamente minoritário e contencioso, a compreensão da personalidade dos animais encontra fundamento na compreensão de que a personalidade jurídica não equivale ao ser humano, mas sim à noção de que se trata de uma construção jurídica. Nesse sentido, merece destaque o entendimento de Kelsen (1992, p. 98), que compreende que: 

Definir a pessoa física (natural) como um ser humano é incorreto, porque homem e pessoa não são apenas dois conceitos diversos, mas também os resultados de dois tipos inteiramente diversos de consideração. Homem é conceito da biologia e da fisiologia, em suma, das ciências naturais. Pessoa é um conceito da jurisprudência, da análise de normas jurídicas. 

Francione (1995) esclarece que considerar os animais como pessoas permite a adequada proteção dos seus interesses, na medida em que a sua qualidade de propriedade condiciona os interesses dos animais à lógica mercadológica expressa em sua coisificação. No mesmo sentido, Belchior e Oliveira (2016) explicam que as normas que visam protegê-los são ineficazes, em razão da prevalência dos interesses humanos envolvidos. Para o autor americano, não há sentido em se falar em direitos animais sem implicar que estes são pessoas, uma vez que somente pessoas podem titularizar direitos (FRANCIONE, 1995). 

Quando considerados os animais como pessoas, no sentido jurídico, a questão não é dotada de elevada complexidade. Isto, pois, ao reconhecê-los como pessoas, aplicar-se-á a Teoria das Incapacidades prevista no Código Civil (BRASIL, 2002). Neste contexto, por não possuírem capacidade intelectual e comunicativa para expressar a sua vontade, todos os animais não humanos seriam incapazes, na forma do art. 4º, III, do Código Civil e, portanto, atrairiam a previsão do art. 178, II, do Código de Processo Civil (BRASIL, 2015). Isto é, a atuação do Ministério Público decorreria da intransponível incapacidade do animal não humano. Assim, considerando os animais como pessoas e, enquanto pessoas, intransponível e permanentemente incapazes de exercer os seus direitos pessoalmente (diante da indiscutível irracionalidade e incapacidade de expressão de sua vontade), a intervenção ministerial é medida que se impõe, sob pena de nulidade absoluta. 

Antes de se avançar para a aplicação da outra teoria, importa apontar que não se faz aqui qualquer analogia com a guarda de seres humanos, não estando a intervenção ministerial vinculada a esta analogia, mas sim à sua condição de incapaz. 

2.1.2 Os animais enquanto sujeitos de direitos não personificados 

Com maior aceitação doutrinária, existe o entendimento de que os animais são sujeitos de direitos não personificados. Ao contrário de coisas, como Ferreira (2014) explana, os animais são sencientes, motivo pelo qual titularizariam direitos, sem a necessidade de classificá-los como pessoas. Assim, os demais animais seriam, nessa perspectiva, entes despersonificados possuidores do direito de não serem submetidos à crueldade. Esse direito repercutiria no estabelecimento estatal da regulamentação de uma guarda, uma vez que se trataria do fundamento do próprio instituto. Ao contrário da concepção de que os animais são pessoas, aqui não se está diante de um incapaz, uma vez que a capacidade civil pressupõe a personalidade (ENNECCERUS, 1947). Consequentemente, afasta-se do fundamento da intervenção ministerial com fundamento no art. 178, II, do Código de Processo Civil (BRASIL, 2015). Da leitura do referido artigo, observa-se que ainda restaria a possibilidade de atuação ministerial fundada na natureza do interesse jurídico envolvido, motivo pelo qual se deve proceder à investigação. Com efeito, caso o interesse jurídico envolvido seja, conforme o art. 178, I, do Código de Processo Civil (BRASIL, 2015), público ou social relevante, haverá a intervenção do Ministério Público. A discussão se cinge quanto à publicidade ou socialidade relevante do interesse da guarda de animais inseridos num contexto familiar. 

Quanto à locução “interesse público relevante”, Ferraz e Benjamin (2004) explicam que se trata de uma expressão de múltiplo significado. Segundo os autores, ao examinar o texto do art. 129 da Constituição Federal – que possui especial relevância em razão de se tratar do dispositivo normativo que elenca as atribuições do Ministério Público brasileiro –, esta expressão: 

[…] qualifica os serviços que, embora não prestados diretamente pelo Estado (isto é, embora não sejam propriamente “serviços públicos”), são marcados pela importância, necessidade e essencialidade para o Poder Público e para a sociedade.

(FERRAZ; BENJAMIN, 2004, p. 86). 

Desta compreensão, portanto, se extrai que interesse público relevante quando se trata de algo necessário e essencial para o Poder Público e para a sociedade. A contrario sensu, aquilo que não é necessário ou essencial para o Poder Público e para a sociedade não possui interesse público. Por sua vez, o denominado “interesse social”, conforme os mesmos autores afirmam, é objeto de distinção legislativa, que busca separá-lo do interesse público em diversas passagens, inclusive de dispositivos constitucionais (FERRAZ; BENJAMIN, 2004). Nessa esteira, ao se tratar de motivador da intervenção do Ministério Público, segundo os autores, o interesse social e o interesse público se confundem, na medida em que se trataria dos interesses da comunidade, posto que não resta autorizada a intervenção ministerial quando da mera presença, no polo processual do Estado (FERRAZ; BENJAMIN, 2004). 

No caso dos animais, não parece haver qualquer dúvida de que não há interesse público ou social envolvido, uma vez que os animais não humanos domésticos ou domesticados não possuem utilidade comunitária1 – expressando, assim, o patrimônio público primário – ou estatal – desta vez, secundário. Isto, pois, a guarda dos animais tratar-se-ia de uma preocupação essencialmente intrafamiliar, afastando-se da previsão do art. 698, caput, do Código de Processo Civil (BRASIL, 2015). Por sua vez, se deve afastar a ideia de que se pode aplicar, analogicamente, a previsão de atuação custos legis do Ministério Público em ações de guarda de crianças e adolescentes no caso daquelas que discutem a guarda de animais. Embora tentadora a analogia não idônea, uma vez que, conforme explicado em texto de maior fôlego, o fundamento normativo possui, teologicamente e historicamente, divergências normogênicas insuperáveis. 

A guarda de crianças e adolescentes tem como fundamento normativo o art. 33 do Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990), bem como o art. 1.583 do Código Civil (BRASIL, 2002). A intervenção ministerial nesses casos tem fundamento no art. 202 do Estatuto da Criança e do Adolescente – que estabelece que o Ministério Público obrigatoriamente atuará, quando não for parte, na defesa dos direitos e interesses das crianças e dos adolescentes – o que não possui correspondente no caso dos animais não humanos. A aplicação análoga deste regramento desvirtua o papel ministerial no exercício da tutela dos seres humanos em estágio de desenvolvimento, não havendo de se falar em fundamento teleológico compatível do instituto2

Não se revela apropriada a atuação, enquanto fiscal da lei, do Ministério Público em ações que dizem respeito à guarda de animais, quando se adota a teoria da subjetividade destes animais de forma despersonalizada. 

2.2 Atuação do Ministério Público como parte 

O debate sobre a possibilidade de o Ministério Público atuar enquanto parte, especialmente enquanto substituto processual do animal afetado, não possui fundamentação nas teorias sobre a personalização ou não dos animais. Trata-se de um debate que é agnóstico em relação àquele, uma vez que envolve a exegese de normas processuais especiais. 

Em 10 de julho de 1934, o então chefe do governo provisório da República, Getúlio Dornelles Vargas, decretou que os animais seriam assistidos em juízo pelos representantes do Ministério Público, em ato normativo que recebeu o número 24.645. O retrocitado dispositivo normativo é compreendido pela doutrina especializada como fundamento jurídico da substituição processual dos animais pelo Ministério Público em nosso ordenamento jurídico: 

São definidas como características da substituição para os animais não-humanos: a) a legitimação dos animais estará regulada pelo o Decreto nº 24.645/34; b) o Ministério Público e as entidades de proteção animal atuarão no processo na qualidade de parte, e não de representante processual; c) a substituição processual poderá acontecer em ambos os pólos, passivo e ativo; e d) o substituto processual pode ser sujeito passivo de sanções processuais, como a punição por litigância de má-fé […].  

(SILVA, 2009, p. 332).

A hodierna vigência deste diploma normativo é ponto de controvérsia na doutrina, porquanto o Decreto 11/1991 (BRASIL, 1991) revogou, em anexo, diversos decretos, dentre eles, o 24.645/1934. Assinado pelo então presidente Fernando Collor, o Decreto 11/1991 dizia respeito à estrutura regimental do Ministério da Justiça, e foi editada com fulcro no art. 84, IV e VI, da Constituição Federal. Ocorre que o Decreto 24.645/1934 tem como temática normas de direito processual civil e direito ambiental, tendo sido editado na forma do Decreto 19.398/1930 (BRASIL, 1930) – em momento de interregno constitucional –, recepcionado na Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1934, consoante o art. 18, caput de suas disposições transitórias (BRASIL, 1934). Não tendo o presidente da República a competência para revogar lei, ainda mais lei que trata de processo civil e direito ambiental, seu Decreto 11/1991 resta eivado de inconstitucionalidade formal, neste ponto. Nesse sentido, doutrina especializada compreende que ainda se encontra vigente o decreto varguista (SILVA, 2009). 

Feitas estas considerações, observa-se que o Decreto 24.645/1934 (BRASIL, 1934) conferiu ao Ministério Público o papel de assistente dos animais em juízo, conforme se vê no art. 2°, § 3°, quando se vislumbrar a ocorrência de maus-tratos. Esta previsão coaduna com o papel do Ministério Público enquanto fiscal da ordem jurídica, bem como efetivador do comando do art. 225, VII, da Constituição Federal (BRASIL, 1988). Por estas razões, não poderá o Ministério Público ajuizar ação de guarda de animais com fundamento neste decreto em qualquer hipótese, mas somente nas hipóteses de maus-tratos elencados no art. 3º do retromencionado diploma normativo. Sendo assim, resta possível o ajuizamento de ação de guarda pelo Ministério Público em favor de um animal, com o objetivo de fazer cumprir o art. 225, VII, da Constituição Federal, quando identificada a ofensa ao texto constitucional. 

3 A atribuição do promotor natural 

A pertinência de uma discussão sobre qual seria a atribuição do promotor natural para atuar no caso é relacionada, inicialmente, ao debate quanto ao fundamento normativo da guarda de animais, partindo-se do pressuposto de que ela é juridicamente distinta da partilha de bens – visão esta que reconhece que os animais não humanos, dentro do contexto da família multiespécie, não possuem natureza jurídica de bens que integram os aquestos. 

Considerando que há entendimento no sentido de que o fundamento da guarda dos animais é a mera analogia da guarda das crianças e adolescentes, revela-se adequado o entendimento de que o promotor de justiça que atua em litígios familiares tenha atribuição para atuar no feito. Esta solução, entretanto, encontra dificuldade na medida em que, a princípio, é matéria estranha para a Promotoria de Justiça de Famílias lidar com o normativo de proteção dos animais. Por outro lado, compreendendo que o fundamento normativo da guarda dos animais é o art. 225, VII, da Constituição Federal (BRASIL, 1988), se vê que a atribuição recairia sobre a Promotoria de Justiça com atribuição ambiental. Parece ser a solução mais adequada, uma vez que se vê a aplicação de uma norma de natureza jurídico-ambiental no contexto familiar. A atuação do Ministério Público estaria pautada na observância das normas de direito ambiental, não nas de direito de família. 

Nesta esteira, aponta-se como mais acertada a atribuição do membro do Ministério Público a oficiar perante causas ambientais, caso não haja critério explícito em sentido diverso. 

Naturalmente, diante da complexidade do caso, poder-se-á visualizar a confluência de discussões que são comuns ao direito de família, como guarda de crianças e adolescentes, bem como de direito animal, como é o caso da guarda de animais. Nesta hipótese, descartando a atuação conjunta entre os membros com as respectivas atuações – que é, idealmente, mais adequada – não se revela especialmente prejudicial à atuação do membro com atribuição no direito das famílias. 

Não obstante, esta discussão somente possui utilidade no contexto de uma comarca com multiplicidade de membros do Ministério Público que concorrem, entre si, às atribuições no âmbito da seara ambiental e familiar, e ausente a expressa previsão normativa interna sobre o tema. 

4 Considerações Finais 

Durante a explanação, verificou-se que o papel do Ministério Público em ações de guarda que envolvem animais não é destituído de complexidades, perpassando por debates sobre a natureza jurídica dos animais, o fundamento normativo da intervenção ministerial em nosso ordenamento jurídico e a existência de decretos recepcionados como lei em nosso ordenamento jurídico. 

Buscou-se superar uma visão que busca simplesmente transplantar as regras processuais da ação de guarda de crianças e adolescentes aos animais, em razão da distinção do fundamento normativo que baliza as respectivas atuações. Por conta disso, a complexidade temática demonstrou que a resposta sobre a atuação ministerial está atrelada a prévias opções teóricas, notadamente quanto à subjetividade dos demais animais e seu fundamento jurídico. 

Observou-se, assim, que atento ao fundamento constitucional para a atuação ministerial no Processo Civil, o órgão do Ministério Público está diante da possibilidade ou não de atuar enquanto fiscal da ordem jurídica ou mesmo como substituto processual dos animais. Adotando-se a compreensão de que os animais são pessoas jurídicas, aplica-se a eles as regras da incapacidade civil, o que fundamentaria a atuação do Ministério Público fundado no art. 178, II, do Código de Processo Civil (BRASIL, 2015), ante a indisponibilidade do art. 225, VII, da Constituição Federal (BRASIL, 1988). Por outro lado, adotando-se o entendimento de que os animais são sujeitos de direitos despersonalizados, não se vê fundamento normativo para a atuação ministerial. 

Não obstante, o ajuizamento de ação civil, pelo Ministério Público, para estabelecer guarda, diante de situação de maus-tratos, encontra previsão legislativa no Decreto 24.645/1934 (BRASIL, 1934), que foi recepcionado na qualidade de lei processual. 

Em derradeiro, verificou-se que o promotor de justiça natural para atuar no feito, salvo previsão expressa ou cumulação de causas de pedir com outros temas pertinentes ao direito de família, é aquele que possui atribuição para atuar no âmbito ambiental.

Referências 

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Glossário

A contrario sensu: (Lê-se: a contrário sénsu.) Contrariamente; em sentido contrário.  
Fonte: SANTOS, Washington dos. Dicionário jurídico brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. 

Aquesto: Aquesto é o bem adquirido pelos cônjuges na constância do casamento. Embora a expressão se referisse originariamente ao casamento, tem sido utilizada, por extensão, para designar também os bens adquiridos pelos companheiros durante a união estável. A Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal proclamou que no regime da separação legal de bens comunicam-se os adquiridos na constância do casamento. Indicando assim que, independentemente da manifestação da vontade das partes ou até mesmo da disposição legal, os aquestos devem ser considerados como bens comuns, a exigir partilha no caso da dissolução da sociedade conjugal. 
Fonte: SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 31. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. 

Contencioso: (Lat. contenciosu.) Relativo à contenção, litígio; litigioso; tudo aquilo, que, por via judicial, dá lugar à contestação ou discussão; diz-se da jurisdição, do poder atribuído ao juiz ou tribunal para julgar; um departamento de qualquer administração que tem a seu cargo os negócios litigiosos. 
Fonte: SANTOS, Washington dos. Dicionário jurídico brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. 

Custos legis: (Lê-se: cústos légis.) O guardião, protetor, defensor da lei. 
Fonte: SANTOS, Washington dos. Dicionário jurídico brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. 

Exegese: (Gr. exégesis.) Explicação, comentário ou dissertação para esclarecimento de um texto de lei ou outro; o mesmo que hermenêutica jurídica, no caso do exame das leis. 
Fonte: SANTOS, Washington dos. Dicionário jurídico brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. 

Fulcro: Ponto de apoio; base; sustentáculo. 
Fonte: Aulete Digital 

Hodierno: Ref. Aos dias de hoje; atual; moderno. 
Fonte: Aulete Digital 

Idôneo: (Lat. idoneu.) Que tem condições legais e morais para bem desempenhar certas responsabilidades; apropriado, apto, capaz, merecedor de confiança e de crédito. 
Fonte: SANTOS, Washington dos. Dicionário jurídico brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. 

Infralegal: Diz-se de atos ou recomendações que não estão de acordo com os dispositivos legais. 
Fonte: Aulete Digital 

Interregno: Interrupção ou cessação momentânea; intervalo. 
Fonte: Aulete Digital 

Múnus: (Lat. munus.) Funções que um indivíduo tem de exercer. Obrigação, dever, ofício, cargo, encargo.  
Fonte: SANTOS, Washington dos. Dicionário jurídico brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. 

Nulidade: No latim medieval nullitas, de nullus (nulo, nenhum), assim se diz, na linguagem jurídica, da ineficácia de um ato jurídico, em virtude de haver sido executado com transgressão à regra legal, de que possa resultar a ausência de condição ou de requisito de fundo ou de forma, indispensável à sua validade. 
Fonte: SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 31. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. 

Promotor natural: A teoria do promotor natural, ou legal, decorre do princípio da independência, que é imanente à própria instituição. Ela resulta, de um lado, da garantia de toda e qualquer pessoa física, jurídica ou formal que figure em determinado processo, que reclame a intervenção do Ministério Público, em ter órgão específico do parquet atuando livremente com atribuição predeterminada em lei, e, portanto, o direito subjetivo do cidadão ao Promotor, legalmente legitimado para o processo. Por outro lado, ela se constitui também como garantia constitucional do princípio da independência funcional, compreendendo o direito do Promotor de oficiar nos processos afetos ao âmbito de suas atribuições (Paulo Cézar Pinheiro Carneiro). 
Fonte: SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 31. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. 

Notas

1. Não é o caso dos denominados animais comunitários, que consistem em animais não domiciliados assistidos pela comunidade em que estão inseridos. 

2. Em sentido divergente, há doutrina de escol que aponta que “[…] em face da semelhança com o conflito sobre a convivência com os filhos, possível a aplicação analógica dos mesmos dispositivos legais [da guarda].” (DIAS, 2020, p. 411). 

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