Este ensaio não representa a opinião institucional do Ministério Público do Estado da Bahia, de seus órgãos ou integrantes, sendo de iniciativa e responsabilidade exclusivamente pessoal da autora.
A seção Ciência em Debate foi inaugurada em setembro de 2021, aqui no website da Unidade de Fomento à Pesquisa e Inovação do MPBA, com vistas a oferecer à comunidade interna da instituição um espaço onde pudessem publicar textos sobre pesquisa científica, mas com um formato mais flexível, como mais espaço para opiniões pessoais, sem a obrigatoriedade de estarem sustentadas por dados, como no argumento acadêmico. No tempo em que a seção esteve no ar, foram publicados textos a cada dois meses, sobre temáticas diversas, escritos por membros e servidores do MPBA.
Neste mês, nos despedimos deste primeiro formato que a seção assumiu (com a perspectiva de uma versão ainda mais completa a ser lançada em breve), retomando a questão levantada pelo primeiro texto publicado. Na primeira edição da seção Ciência em Debate, escrevi a respeito do uso de uma linguagem excessivamente formal na área jurídica, questão que chamamos de hermetismo linguístico. Com o título de “Por um português jurídico mais brasileiro”, o texto que inaugurou esta seção argumentou que, de todos as áreas sociais, a jurídica é uma das que mais deveria apresentar uma linguagem clara e acessível à população, uma vez que o conteúdo de suas publicações é de interesse primário de quem recorre ao sistema de justiça.
Veja bem, o cidadão comum se vê envolvido em um processo judicial, seja qual for a parte que ele representa, e não consegue entender o que está escrito nos autos do processo que o envolve. Isso é um problema grave, apontado por alguns autores e críticos da questão como uma violência simbólica, visto que acaba por excluir, marginalizar o cidadão de um acesso direto ao andamento do processo. Ou seja, ele precisa recorrer a um advogado ou defensor público, que age praticamente como um tradutor do que está ali escrito.
No entanto, essa questão foi bastante discutida no texto mencionado, então, por que retomá-la aqui? Bom, não é muito produtivo apontar um problema sem sugerir um caminho para solucioná-lo, portanto, neste texto, que encerra o primeiro formato do Ciência em Debate, vou apontar alguns exemplos de uso excessivamente formal da língua em textos jurídicos e oferecer algumas alternativas para torná-la mais fluida e acessível ao leitor leigo.
Antes de tudo, conversas informais com colegas de trabalho me mostraram que é preciso esclarecer um pouco as variedades de Língua Portuguesa que temos a nossa disposição e o uso social que, em geral, se faz de cada uma delas.
Isso é importante, porque a língua é um dos recursos simbólicos disponíveis para exercer uma série de movimentos sociais tanto de aproximação – quando recorremos a uma linguagem que não usamos no dia a dia para facilitar a comunicação com determinado grupo social, como adolescentes por exemplo; quanto de distanciamento e exclusão, quando a utilizamos para marcar que temos acesso a um conhecimento linguístico que o outro não tem; ou até mesmo quando fazemos uma leitura social da pessoa com quem estamos interagindo, a partir da variedade do português que ela utiliza, o chamado preconceito linguístico, que é um conceito amplamente discutido na mídia e na academia, tendo como principal nome o linguista e intelectual Marcos Bagno.
Quais são, então, as principais variedades do Português Brasileiro? Vamos pensar em um continuum, no qual temos, em uma das extremidades, a variedade que chamamos de língua padrão; e na outra, a que chamamos de língua popular.
A língua padrão é uma língua abstrata, um conjunto de regras, que serve como referência para que os seus usuários tenham uma noção do que está correto ou não. Ou seja, essa variedade representa a língua das gramáticas, dos dicionários e dos livros didáticos mais tradicionais, mas não representa a maneira de falar ou escrever de nenhum usuário real da língua, em nenhum contexto social. No outro extremo, está a língua popular, que se constitui como um conjunto de variedades utilizados pelos falantes de uma determinada língua em seu dia a dia, especialmente em situações de descontrações, em que não estão preocupados com o que é correto ou incorreto, de acordo com a língua padrão.
O uso que fazemos do Português (ou de qualquer outra língua) se constitui como um vai e vem nesse continuum; determinadas situações/usos socias da língua farão com que nos aproximemos mais ou menos de um ou outro extremo, e o “juridiquês” – que discutimos no texto mencionado anteriormente – se constitui como uma aproximação excessiva com a extremidade da língua padrão, chegando a um ponto em que se constitui como uma variedade quase anormal do português ao utilizar termos e formas da língua que já não são mais utilizadas em quase nenhum outro uso social, como é o caso da mesóclise (ex. Buscar-se-á).
Isso quer dizer que, em âmbito jurídico, as pessoas deveriam utilizar variedades populares do Português? Não necessariamente. É exatamente aí que entra o que chamamos de língua culta: o nome que se deu à variedade utilizada por pessoal com um grau alto de escolarização, em contextos mais formais de uso da língua, especialmente na escrita. Um exemplo de uso da língua culta é a variedade utilizada pela mídia, tanto escrita como oral. Nela, predominam termos formais, que seguem as regras mais contemporâneas da língua padrão, principalmente aquelas de ortografia.
O que acontece é que a associação do âmbito jurídico às normas rígidas de um tribunal de justiça faz com que essa área recorra a um Português muito formal, que simboliza, na língua, o caráter tradicional de como a prática jurídica acontece. Isso traz uma série de consequências que vão desde a exclusão dos próprios usuários do sistema de justiça de um acesso direto, imediato ao seu acontecimento; até o isolamento do Direito enquanto área do conhecimento, que acaba não dialogando muito com áreas correlatas, pelo uso de jargões e linguagem muito própria da disciplina, dificultando a inter e transdisciplinaridade, tendências fortes da construção contemporânea do conhecimento.
Abaixo temos um exemplo claro dessa associação entre uso formal da língua e qualidade textual, ou até mesmo profissional.
Observe o título do texto “Vocábulos que irão ajudá-lo a escrever uma tese/dissertação/monografia de sucesso”, e veja que o texto está no website da biblioteca de uma faculdade de Direito. O que faz um texto acadêmico de sucesso, claramente, não são as escolhas linguísticas de seu autor, mas o conteúdo do trabalho, a qualidade argumentativa e clareza do texto. É claro que utilizar uma linguagem apropriada ao grau de formalidade do contexto em que o texto vai circular é importante, mas nem de longe ajuda ou interfere no sucesso do trabalho.
Pensando nisso, e na realidade do Português jurídico que encontramos no Ministério Público, resolvi trazer hoje cinco exemplos de situações em que a formalidade da língua se torna excessiva no âmbito jurídico. Esses exemplos vêm acompanhados de sugestões de substituições, que mantêm o texto com qualidade e em uma variedade culta da língua, que é uma exigência social que se faz a textos acadêmicos e que circulam em contexto mais letrados da nossa sociedade, como é o caso do ambiente profissional.
1 – Uso do termo Parquet
É muito comum ver o uso do termo Parquet para se referir ao Ministério Público, de maneira geral. No entanto, para além de ter conhecimento linguístico, ou alto grau de escolarização, é preciso saber que esse termo é utilizado com esse fim, para entender o que se quer dizer. A origem do uso vem do fato que antigamente os promotores de justiça ficavam posicionados em um tablado de madeira nos tribunais de justiça, que tinha o nome de parquet. Assim, como o promotor de justiça é a figura que representa essa instituição, ela passou a ser denominada dessa maneira.
Porque não utilizar simplesmente o termo Ministério Público? Porque escrever um texto inteiro repetindo a mesma expressão torna o texto repetitivo, cansativo, fazendo com que as pessoas optem por Parquet como alternativa. Porém, existem outras alternativas, veja:
O Ministério Público interviu na situação. A atitude do Parquet, no entanto, não foi bem recebida pelos acusados.
O Ministério Público interviu na situação. A atitude da instituição, no entanto, não foi bem recebida pelos acusados.
2 – Uso de conjunções que não são frequentemente utilizadas fora do âmbito jurídico
Outro exemplo muito recorrente é o uso de conjunções que exigem que o leitor, mesmo o leitor acadêmico, pesquise o valor, o que a conjunção quer expressar. Nesse caso, duas conjunções muito utilizadas, em textos jurídicos, são outrossim e destarte.
Nos dois casos, a conjunção pode ser tranquilamente substituída por uma série de opções suficientemente formais, mas que tem uma circulação maior na sociedade, o que facilita sua compreensão.
Conjunção | Sinônimos mais frequentes |
Outrossim | Além disso; Não só…mas também; Não apenas…como também; Acrescentando-se que; Acrescente-se que; Saliente-se ainda que; Ademais; Em adição. |
Destarte | Portanto; Assim sendo; Consequentemente; Então; Deste modo; Desta maneira; Em vista disso; Diante disso; Assim; Dessa forma; dessa maneira; Logo. |
3 – Uso de palavras que têm pouca circulação social (ex. Peremptório)
A escolha de um vocabulário mais comum também pode ajudar a tornar a mensagem mais clara. A título de exemplo, trago a palavra peremptório, um adjetivo praticamente utilizado (ao menos com frequência) somente no meio jurídico.
Qualquer pessoa leiga precisa buscar o significado desta palavra em um dicionário, o que torna seu uso um empecilho à comunicação, especialmente na fala, em que seu uso é ainda mais incomum do que na escrita.
Alguns sinônimos de peremptório, de fácil compreensão, são: definitivo, categórico, decisivo, formal, terminante, nulo.
A depender do que se quer expressar, cada um desses sinônimos será mais adequado.
4 – Uso do pretérito mais que perfeito simples (ex. quisera, informara, notificara)
Uma das modificações que o Português Brasileiro sofreu ao longo do tempo foi o uso cada vez menos frequente deste tempo verbal. O pretérito mais que perfeito é utilizado na língua padrão para sinalizar uma ação passada que ocorre antes de uma outra ação passada, marcando a ordem em que elas acontecem. No entanto, esse tempo verbal foi caindo em desuso, sendo hoje em dia encontrado somente em textos antigos, como livros clássicos. Em seu lugar, os falantes costumam escolher o pretérito mais que perfeito composto:
Eu telefonara, quando ela chegou (mais que perfeito simples)
Eu havia/tinha telefonado, quando ela chegou (mais que perfeito composto)
5 – Uso da mesóclise (ex. Obrigar-se-á)
Como último exemplo, trago o uso da mesóclise, como tipo de colocação pronominal. Este uso é mais um exemplo de estruturas de nossa língua que sobrevivem apenas em textos antigos e questões de concurso, e que tornam nosso texto bastante truncado.
É bem verdade que há situações em que a forma preferencial – próclise (ex. se escreveu um texto) não é possível, como é o caso do início de orações; nesses casos, temos que recorrer à ênclise (ex. Escreveu-se um texto), que deve ser utilizada somente quando a próclise não é possível. Existem ainda contextos em que nem mesmo a ênclise é permitida, como é o caso do futuro do indicativo no início da oração; nesse caso, ambas as formas abaixo estão incorretas:
Próclise – Se escreverá um texto
Ênclise – Escreverá-se um texto
Mesóclise – Escrever-se-á um texto
O que fazer em situações como esta, para que seja evitado o uso da mesóclise? É possível recorrer à voz passiva analítica, ficando a oração assim:
Ex. Um texto será escrito.