RACISMO ANTINEGRO E A ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO 

Delina Santos Azevedo 

Mestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Especialista em Direito Civil pela UFBA. Bacharel em Direito pela Faculdade Ruy Barbosa. Atualmente é servidora do Ministério Público do Estado da Bahia (MPBA). Co-Gerente do Projeto Movimenta – Planejando a Mobilidade Urbana do MPBA. Integrou o Grupo de Enfrentamento e Combate ao Racismo Institucional do MPBA. Integra o Coletivo Maria Felipa de membros e servidores do MPBA. É integrante do Grupo de Pesquisa sobre Racismo do Ministério Público do Estado da Bahia, sob a liderança da Promotora de Justiça Lívia de Santana Vaz e Dr. Saulo Mattos, integrante do Coletivo Nacional Juristas Negras e integrante do Grupo Transdisciplinar em Pesquisa Jurídica para uma Sociedade Sustentável, do Professor Dr. Francisco Quintanilha Veras Neto, que concentra os estudos em críticas ao neoliberalismo, direitos humanos ecológicos e interculturais, estudos descoloniais, constitucionalismo andino, Pashamama, constitucionalismo negro, quilombismo, racismo ambiental, geopolítica, ecologia mundo.

Resumo 

O presente artigo tem como finalidade apresentar a demanda de racismo antinegro, ou seja, as ações discriminatórias praticadas contra pessoas negras (individual ou coletiva) e contra as religiões de matrizes africanas, como umbanda e candomblé, que geram a necessidade de atuação e intervenção do Ministério Público, enquanto guardião da ordem e dos direitos individuais indisponíveis, conforme previsto no artigo 127 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (BRASIL, 1988). O racismo no Brasil é um problema de cunho social e histórico, que ultrapassa os limites da relação interpessoal, uma vez que está enraizado nas estruturas sociais, políticas e institucionais, demandando ações ministeriais não apenas repressivas, mas também e sobretudo, preventivas e transacionais, visando que as penalidades assumam seu caráter educativo e preventor da perpetuação dessa herança opressora dos povos negros deixada pelo colonialismo. Com esse intuito, o artigo foi dividido em três partes principais, que buscam contextualizar o leitor na perspectiva histórico-legal brasileira do combate ao racismo, seguindo para a compreensão dos principais tipos penais levados ao Ministério Público e, por fim, explicitando as possibilidades de atuação do promotor de justiça nesta seara. É concluído ao final que é sobremaneira importante e necessário que a instituição assuma a pauta racial como prioridade estratégica de atuação, com fins de contribuir para uma sociedade livre, justa e igualitária, conforme mandamento constitucional. 

Palavras-chaves: racismo antinegro; Ministério Público; Justiça. 

1 Introdução 

O racismo no Brasil é pautado inicialmente, antes da ocorrência de um fato específico de agressão a uma pessoa diretamente, pela constituição de estruturas racistas, que marginalizam e excluem a população negra de direitos fundamentais mínimos, individuais e sociais, desde a cidadania, dignidade da pessoa humana, respeito, moradia, emprego, educação, saúde, transporte, cultura e lazer.  

Considera-se racismo antinegro tratar a pessoa de pele escura de forma diferente, inferiorizando-a em razão da sua cor, raça, etnia, religião ou procedência nacional. É uma definição sociopolítica, fundada na herança colonial da sociedade brasileira e sustentada pelas estruturas de poder e dominação.  

O Racismo Estrutural, portanto, alimenta o ciclo vicioso de manutenção do status quo inferior e dependente das pessoas negras, que podem ser observados em dados censitários sociais e econômicos, como também apoiados na doutrina acerca do racismo estrutural trazida por autores como Almeida (2020), Nascimento (2021), Nascimento (2020), Moreira (2020), Vaz (2021), entre outros. 

Este texto é fruto de uma pesquisa exploratória, documental e bibliográfica, que busca compreender o racismo antinegro, apresentado em três partes principais, sendo a primeira um recorte sobre a negritude e o racismo no Brasil. A segunda seção aborda, de modo sistematizado, os tipos penais e a terceira reflete a atuação do Ministério Público em face de crimes tipificados como Racismo, Injúria Racial ou Intolerância religiosa. 

O presente artigo parte do pressuposto de que os crimes de racismo impactam a vida, a honra e a dignidade das pessoas negras, sendo necessário compreender de que forma essas condutas discriminatórias têm sido tratadas pelo Sistema de Justiça no Brasil e os alcances dos instrumentos protetivos. 

2 O racismo antinegro como traços da formação do povo brasileiro

Depois de sete anos de trabalho, o velho, o doente, o aleijado e o mutilado – aqueles que sobreviveram aos horrores da escravidão e não podiam continuar mantendo satisfatória capacidade produtiva – eram atirados à rua, a própria sorte, qual lixo humano indesejável; estes eram chamados de africanos livres.

(NASCIMENTO, 2020, p. 79).

Esta é a base da inserção do povo negro na sociedade brasileira: negros afrodescendentes que foram escravizados por colonizadores europeus no século XVI, aproximadamente em 1530, que perdurou oficialmente durante 350 anos, quando em 1888, foi assinada a Lei Áurea – Lei n. 3.353, de 13 de maio de 1888, quando a partir dessa data, a escravidão passou a ser considerada crime e quase 700 mil escravos foram “libertados” no Brasil.  

Historicamente, faz-se necessário pontuar que o fim oficial da escravidão se deu, assim como o seu início, devido à pressão política da Inglaterra, líder econômica do período em estudo, que impulsionou o mercantilismo, a escravidão para produção agrícola, entre os séculos XV, XVI e XVII e depois, com a Revolução Industrial, interveio para criar a classe trabalhadora para suas mineradoras e indústrias, além de criar a classe consumidora desses produtos. 

Nesse processo e, antes da Lei Áurea, foram assinadas ainda a Lei do Ventre Livre, em 1871, para filhos de escravos, e a Lei dos Sexagenários, em 1885, para os escravos a partir de 60 anos. Ocorre que essas leis não tinham resultado prático, visto que na Lei do Ventre Livre os escravos nascidos ficavam sob a tutela do senhor até os 21 anos de idade e poucos deles chegavam aos 60 anos e quando assim, estavam em idade avançada e muito fragilizados. 

Essa libertação, todavia, não ocorreu de forma plena, visto que não foram oferecidos direitos, terras, benefícios trabalhistas, educação, ou seja, nenhum recurso e apoio do Estado para a inserção social das pessoas negras, como também, à época, em 1888, não foi dada a oportunidade para os negros afrodescendentes de serem levados de volta para os territórios africanos. Assim, muitos continuaram trabalhando na condição de escravidão, sem direitos e sem renda, pela falta de oportunidades. Criou-se, portanto, a realidade social de escravos libertos sem origem, sem nome, sem-terra, sem trabalho, sem poder voltar às suas terras e sem ter onde ficar, marginalizados socialmente e economicamente. 

Pessoas negras que cresceram sob essa estrutura desumana e desigual e que conseguiram sobreviver a tantas adversidades da vida ainda hoje lutam para serem definitivamente integrados a sociedade brasileira em igualdade de condições, para poderem usufruir a pretensa liberdade prometida na Lei Áurea, em 1888, na transição de uma monarquia escravocrata para uma república racista (GÓES, 2021). 

A construção social do povo negro no Brasil levou-os a ocupar a posição econômica inferior, transformando-os de ex-escravos em trabalhadores domésticos e subalternos, criando e corroborando ao longo do tempo a concepção ideológica e psicológica de inferioridade do indivíduo e das pessoas negras enquanto grupo social.  

O racismo, nas suas variadas formas — biológico, científico, político, individual, institucional e estrutural —, legitimou ao longo dos anos tratamentos desumanos e cruéis, em forma de castigos, destruição dos objetos e cultura negra, demonização das religiões de matrizes africanas, hostilização da cor, do corpo, do nariz e dos cabelos das pessoas negras, a permissão da ausência nos espaços sociais e de cultura e poder e do olhar enviesado sobre a pessoa negra presente.  

Ainda que se considere a inexistência de subespécies da raça humana, enquanto conceito biológico, o racismo e especialmente, o antinegro, está fincado na lógica político-social opressora e colonial de escravização de pessoas negras que a coloca em posição de inferioridade e subalternidade em relação a pessoas brancas. As pessoas negras foram desumanizadas, violentadas em seus corpos, em sua história, em sua origem, cultura e crenças a partir de um sistema que lhe negava e proibia a livre plenitude do viver, como um não-direito. 

Alguns teóricos e cientistas racistas apostaram na possibilidade de extinção do povo negro com a adoção de medidas eugenistas, branqueamento, o próprio genocídio direto e indireto, pela ausência de políticas públicas e sanitárias, o que de fato não ocorreu. As pessoas negras passaram a ser maioria no quantitativo populacional brasileiro, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE1). Ainda de acordo com dados censitários econômicos e sociais, as pessoas negras representam expressivo contingente da massa carcerária, as que estão em maior número dentro dos desempregados, ainda percebem as menores remunerações (CAMPANTE et al., 2004), ainda são diariamente vitimadas por racismo e mortes violentas no Brasil (SAMPAIO; MENEGHETTI, 2020). 

Diante de tanta desigualdade é necessário haver parâmetros para políticas públicas e medidas legislativas no intuito de reduzir as desigualdades e realizar a real inclusão/aceitação de grupos minoritários e diferentes na sociedade. “Políticas públicas e medidas legislativas devem ter um parâmetro extremamente relevante: uma análise do potencial de ações governamentais que permitam o fomento das capacidades humanas.” (MOREIRA, 2020, p. 726). 

“O racismo transcende o âmbito da ação individual, e, segundo, ao frisar a dimensão do poder como elemento constitutivo das relações raciais, não somente o poder de um indivíduo de uma raça sobre o outro, mas de um grupo sobre o outro […]” (ALMEIDA, 2020, p. 46-47). Desse ponto, partimos para a compreensão do racismo estrutural na organização da sociedade brasileira que decorre da própria estrutura social, do modo normal com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares (ALMEIDA, 2020). O conceito de raça é, portanto, um conceito relacional e só cabe se estiver associando dois grupos sociais-humanos distintos, numa sociedade marcada por conflitos e antagonismos sociais. 

3 Os crimes contra o povo negro na legislação brasileira 

A Lei Afonso Arinos de nº 1.390/1951 foi a primeira norma contra o racismo no Brasil que tornou contravenção penal a discriminação racial, a que se caracteriza em função da raça ou cor e que ficou conhecida pelo nome de seu autor, o deputado federal pelo partido União Democrática Nacional (UDN), Afonso Arinos de Melo Franco. A motivação para elaborar a lei decorre do caso de discriminação envolvendo a bailarina afro-americana Katherine Dunham, que foi impedida, em razão da sua cor, de se hospedar em um hotel em São Paulo (GONÇALVES, 2018). Sem desconsiderar a sua importância, esta norma não alcançou sua finalidade em razão de não prever condenação para a prática delituosa de racismo. 

A primeira Constituição do Brasil que previu alguma criminalização de crimes raciais foi a de 1967, no artigo 150, §1º, que estabelecia: “[…] O preconceito de raça será punido pela lei.” (BRASIL, 1967). Do mesmo modo, a Emenda Constitucional de 1969 estabeleceu que: “[…] será punido pela lei o preconceito de raça.” (BRASIL, 1969). A essa época, a conduta não era prevista constitucionalmente como crime, apenas como um ilícito, que pode ter natureza cível, deixando a cargo do legislador infraconstitucional essa criminalização, o que não ocorreu.  

A Constituição Federal do Brasil de 1988, em seu artigo 5º, inciso XLII, institui que “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei.” (BRASIL, 1988), sendo a primeira a estabelecer a obrigação do legislador de prever o crime de racismo, no artigo 5º, XLII, já descrito acima. O artigo 5º está diretamente vinculado ao direito à igualdade material ou, mais especificamente, à tutela das diferenças, ou seja, a busca pela igualdade real por meio do tratamento diferente de pessoas em situações diferentes (MELO; SILVEIRA, 2020). 

Nesse contexto democrático, pós-ditadura militar e crescimento dos movimentos sociais, decorreu a criação da Lei nº 7.716/1989, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor (BRASIL, 1989). A normatização de condutas discriminatórias em razão da cor, desde a criação da Lei Afonso Arinos, tem servido para combater o racismo, alertando a sociedade de condutas ofensivas, preconceituosas, discriminantes e violentas, que constituem crime imprescritível e inafiançável.  

Todavia, a realidade tem servido diversos exemplos de como a repressão penal não tem sido suficiente, por si só, para proporcionar uma adequada consciência racial da sociedade sobre a necessidade de se evitar a prática de racismo, o qual continua a inviabilizar as existências negras, caracterizando-se o genocídio antinegro.  

3.1 Tipologias penais  

O reconhecimento de condutas discriminatórias contra a pessoa e a cultura negra deu-se no Brasil de forma lenta e gradual, incorporando ou legitimando as práticas religiosas e culturais e a condição inequívoca de direitos iguais a pessoa negra dentro do Estado democrático brasileiro. 

Atualmente, as principais condutas criminais de conteúdo racial estão tipificadas no Código Penal e na Lei nº 7.716/1989. Esta última define os crimes resultantes de preconceitos de raça ou de cor, traz como condutas tipificáveis: impedir ou obstar o acesso de alguém a espaços públicos ou privados, sejam estabelecimentos comerciais, edifícios, escolas, emprego e qualquer outra atividade civil; proporcionar ao empregado tratamento diferenciado no ambiente de trabalho, especialmente quanto ao salário e suas derivações (BRASIL, 1989), como será detalhado a seguir. 

3.1.1 Discriminação de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional  

Mamãe, fui à biblioteca da escola, mas não encontrei nada ali que explicasse essas coisas. Então fui até a igreja do parque e peguei emprestado um livro que fala de Jesus e do país onde ele nasceu. Mamãe, por pouco ele não nasceu na África! Pode imaginar isso? Mãezinha, você acha que Deus entende quando lhe falam em africano? Eu acho que não. A velhinha das flores me explicou que o Deus dos negros se chama Olofi, mas é o mesmo Deus dos brancos, só que cada um coloca nele a cor e o nome que tiver vontade. E disse que Deus fez os homens de todas as cores porque ele é como as crianças, que não gostam de coisas iguais, que as deixam entediadas. 

Imagino que muitos brancos não conhecem essa história. Eles não gostariam de adotar um Deus preto retinto e beiçudo, por mais misericordioso que fosse. Não iam achar bonito.   

(CÁRDENAS, 2020, p. 63-64).

O crime de racismo, previsto no artigo 20 da Lei n° 7.716/1989, refere-se à ofensa da honra de alguém se valendo de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem de uma coletividade, ou seja, um número indeterminado de pessoas, descrito como a prática, induzimento ou incitação à discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, com pena de reclusão de um a três anos e multa. Pode acontecer em situações de negação, restrição, impedimento, recusa de acesso a locais e estabelecimentos, ingresso ou matrícula em instituições públicas e privadas, desigualdade no tratamento e nas condições laborais, até a ofensa direta verbal ou física (BRASIL, 1989). 

Casos dessa natureza são vivenciados diariamente por pessoas de pele preta no Brasil, que têm a sua origem, estrutura corpórea, traços fenotípicos e cultura vilipendiadas e discriminadas por pessoas brancas. A lógica colonialista e da falácia da supremacia branca ainda persiste no imaginário de muitas pessoas que se sentem à vontade para ofender, violentar e discriminar pessoas negras. 

Caso emblemático ocorrido no Brasil e que levou a discussão do racismo à brasileira para nível internacional foi o caso Simone Diniz, levado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) — Relatório 66/06, Caso nº 12.0001. Neste caso, ocorrido em 1997, a vítima registrou boletim de ocorrência por ter sido negada a possibilidade de concorrência a uma vaga de emprego de doméstica em razão da cor da sua pele, pergunta feita e decisão tomada em contato telefônico. O Ministério Público, por sua vez, se manifestou pelo arquivamento do processo por entender não haver provas suficientes para prática do racismo, argumento que foi acatado pelo Magistrado (CIDH, 2006).  

Esse caso é importante para ilustrar a dificuldade de acesso à justiça criminal por pessoas negras vítimas de racismo, em razão do racismo institucionalizado que não admite e impede a investigação e prosseguimento de feitos como esse. Esta foi a conclusão da CIDH pela “resistência dos tribunais na aplicação das leis pertinentes, por meio da descaracterização de condutas típicas, sob o argumento de que não passavam de mal-entendidos.” (VAZ; RAMOS, 2021, p. 180-181). 

Problemas como esses no Sistema de Justiça são formas de tornar inefetivos os dispositivos constitucionais e legais da criminalização do racismo. 

3.1.2 Injúria Racial 

Mãezinha, encontrei um pedaço de espelho na rua. Agora, passo o tempo todo me olhando. A testa, os olhos, o nariz, a boca… Sabe de uma coisa? Descobri que meus olhos são parecidos com os seus, que não podemos ser mais bonitos, e que minha boca e meu nariz são normais. Não gosto que digam que os negros tem nariz achatado e beição. Se Deus existe, com certeza está furioso por ouvir tanta gente criticando sua obra […].

(CÁRDENAS, 2020, p. 19). 

A injúria racial prevista no art. 140, §º 3 do Código Penal (BRASIL, 1940), constitui-se em palavras que visem ofender a honra de alguém, valendo-se de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem, ou seja, é direcionada a uma pessoa específica. 

Para a compreensão do crime de injúria racial, é crucial reconhecer a danosidade de condutas muitas vezes recorrentes no contexto social e cultural, mas que ferem e causam danos ao indivíduo na sua concepção pessoal sobre si mesmo. A injúria racial atinge a subjetividade, a partir de xingamentos e depreciações proferidas contra alguém. 

A definição de termo preconceito designa uma forma de percepção que motiva atitudes e emoções que implicam direta ou indiretamente uma postura de caráter negativo ou uma antipatia em relação a integrantes de certos grupos. Essas atitudes ou emoções podem ser observadas de forma objetiva ou podem ainda ser derivadas de comportamentos que parecem ser neutros, mas que expressam atos tendenciosos e prejudiciais sobre certas classes de pessoas. O preconceito expressa então hostilidade contra uma pessoa porque supostamente ela possui as qualidades negativas atribuídas a uma comunidade de indivíduos.

(MOREIRA, 2020, p. 365). 

Em outubro de 2021, ao denegar um habeas corpus (HC) a idosa acusada de injúria racial, o Supremo Tribunal Federal (STF) afastou a ocorrência de prescrição, conforme postulava a defesa. Na ementa do acórdão, resta consignado:  

O crime de injúria racial reúne todos os elementos necessários à sua caracterização como uma das espécies de racismo, seja diante da definição constante do voto condutor do julgamento do HC 82.424/RS, seja diante do conceito de discriminação racial previsto na Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial. A simples distinção topológica entre os crimes previstos na Lei 7.716/1989 e o art. 140, § 3º, do Código Penal não tem o condão de fazer deste uma conduta delituosa diversa do racismo, até porque o rol previsto na legislação extravagante não é exaustivo. Por ser espécie do gênero racismo, o crime de injúria racial é imprescritível.

(BRASIL, 2021). 

Assim, não há que confundir-se o crime de injúria racial e os crimes previstos na Lei 7.716/89, sendo certo que a injúria racial exige que a vítima manifeste sua vontade de ver o agressor penalmente constrangido, alcança prescrição da pretensão punitiva pelo transcurso de oito anos e possui prazo decadencial de seis meses (a partir do momento em que se toma conhecimento dos autores da infração).  

3.1.3 Intolerância Religiosa e Racismo Religioso 

Mãezinha, ninguém sabe o que Lilita tem. Vovó está feito louca. Botou a casa de pernas para ar com suas ervas. Depois, pegou um galho de pau-ferro, banhou-o com cachaça, defumou-o com cigarro e “limpou-nos” com ele.

(CÁRDENAS, 2020, p. 23). 

O racismo e a intolerância religiosa ocorrem diante de condutas discriminatórias contra pessoas e locais sagrados de culto das religiões de matrizes africanas, entre elas o candomblé e a umbanda. 

A intolerância religiosa marca uma situação em que uma pessoa não aceita a religião ou a crença de outro indivíduo, contrariando o princípio constitucional de laicidade estatal e o contido no art. 5º, VI, da Constituição Federal de 1988 que assegura liberdade de crença aos cidadãos (BRASIL, 1988). Por sua vez, o termo “racismo religioso”, ainda em construção, pela discriminação e/ou ato de violência contra adeptos das religiões de matrizes africanas, principais alvos de violência religiosa no país (ROCHA, 2022). 

Somados à proteção constitucional do direito fundamental à liberdade religiosa, a ofensa verbal e física, bem como ao local e aos objetos sagrados compõem ato delituoso, tipificado criminalmente e sujeito a punição do Estado. 

Nos casos de racismo religioso, o espaço sagrado, bem como os seus representantes e frequentadores sofrem diretamente danos de cunho material e moral, relacionados à fé que professam e que pertence a uma religião de matriz africana. A proteção à liberdade religiosa está prevista na Constituição Federal no artigo 5º, VI: “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.” (BRASIL, 1988). Esse dispositivo que expressa direito fundamental contempla tanto a liberdade na escolha da religião, na sua ausência, como também a profissão de fé e o respeito aos locais e objetos sagrados, o seu culto e liturgia, sejam eles quais forem.  

Há no Brasil uma recorrência histórica, social, legislativa e institucional de se ridicularizar e destruir a crença do candomblé, através de atos discriminatórios e destrutivos, motivados pelo racismo às pessoas negras e toda sua cultura2.  

O racismo religioso contra religiões de matriz africana é praticado no país desde a chegada dos negros no Brasil, trazidos forçadamente pelo tráfico negreiro, que desuniu as pessoas e famílias negras, desumanizou os corpos negros e deslegitimou a exercício da sua cultura e religiosidade, que diferenciavam da europeia, mas sobretudo porque era uma forma de aquilombamento e organização social daquelas pessoas. O caminho para a pretensa liberdade e igualdade de direitos reconhecidos pelo Estado brasileiro tem caminhado a passos lentos, pois a opressão contra o povo negro deixou marcas sociais profundas ainda refletidas através de condutas racistas, mesmo que ilegais e inconstitucionais, encontrando ressoar e guarida em muitas pessoas, autoridades e governos, que insistem em agir de forma desrespeitosa frente as pertenças do povo negro: linguagem, vestimenta, cor da pele, traços físicos, dança, música, alimentação e religião. 

“A discriminação fundada na crença religiosa guarda intrínseca relação com o ideal europeu autocentrado de religiosidade cristã, que resulta na subjugação e deslegitimação das manifestações de fé que destoem desse paradigma.” (VAZ et al., 2016). Em todas as suas formas, é preciso reconhecer a existência do racismo, legitimar a pluralidade e diferenças humanas e sociais, para transformar as estruturas e condutas. 

Moreira (2020, p. 55) ensina que a construção de um Direito Antidiscriminatório “pressupõe a existência de um regime jurídico de responsabilidade estatal que implica a ideia de necessidade de reparação de danos causados aos indivíduos por ações intencionais ou omissivas que lhe tragam prejuízos.” 

O Direito e o Sistema de Justiça acabam por reforçar e reproduzir, na medida em que foi construído em bases coloniais e historicamente ocupado pela branquitude, a partir de padrões de hierarquia racial, uma visão parcial da igualdade, da liberdade e da realização da justiça, limitando a certos grupos socioraciais o acesso a direitos fundamentais, ao respeito à vida, à diversidade e à liberdade religiosa (VAZ; RAMOS, 2021). 

4 Promotoria de Justiça Especializada no combate ao racismo e à intolerância religiosa   

O Ministério Público exerce a função constitucional de “defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.”, conforme estabelece o Art. 127 da Constituição Federal (BRASIL, 1988). 

Na Bahia, em 1997 foi criada, por designação do então Procurador Geral de Justiça, a primeira Promotoria de Justiça de Combate ao Racismo e Intolerância Religiosa do país, única ainda no órgão até a presente data. Quase vinte anos depois, em 2016, por meio da Recomendação nº 40, o Conselho Nacional do Ministério Público, CNMP, recomenda a criação de órgãos especializados na promoção da igualdade étnico-racial, a inclusão do tema em editais de concursos e o incentivo à formação inicial e continuada sobre o assunto.  

Entre as atribuições desta promotoria estão: a) combater o racismo, a discriminação racial e a intolerância religiosa, bem como proteger os direitos humanos em sentido estrito, em articulação com os movimentos sociais; b) promover e acompanhar medidas judiciais, extrajudiciais e administrativas envolvendo tais temáticas; c) dialogar com os movimentos sociais, contribuindo para impulsionar programas e políticas públicas de promoção da igualdade racial, de proteção aos direitos humanos e de garantia da igual liberdade religiosa (Resolução nº 005/2006 – institui o Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação – GEDHDIS do Ministério Público da Bahia). 

O crime de racismo, em razão da sua gravidade e ofensa a uma coletividade, é de atribuição exclusiva do Ministério Público, que diante do Inquérito Policial ou da representação da vítima pode, diante dos fatos e provas colhidas, oferecer a Ação Penal Pública Incondicionada, com base no artigo 20, da Lei nº 7.789/1989 ou condicionada a representação do ofendido, em caso de injúria racial, com base no artigo 140, §3º, do Código Penal. 

O Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) ingressou no ordenamento jurídico em 2019 com a edição da lei 13.964, que ampliou as possibilidades de justiça penal negociada, inserindo o artigo 28-A no Código de Processo Penal (BRASIL, 1941), visto que nos crimes em que a pena mínima for inferior a quatro anos poder-se-á ensejar um acordo de não persecução penal, reduzindo a demanda da justiça criminal.  

Os enunciados 27 e 28 do Conselho dos Procuradores e Promotores de Justiça com Atuação Criminal – CONCRIN (BAHIA, 2022) estabeleceram a iniciativa do Ministério Público para proposição do acordo seguindo cláusulas mínimas com o intuito de garantir a real reprovação de tais condutas criminosas. 

O enunciado 28 traz pontos importantes sobre cláusulas obrigatórias das sanções aplicadas ao réu, como: reparação mínima à vítima, valor mínimo de indenização por dano moral coletivo, considerar fundos ou ações, organizações ou instituições públicas ou privadas específicos destinados ao enfrentamento ao racismo e/ou à promoção da igualdade racial, além da participação do investigado em cursos ou grupos reflexivos de letramento racial, a serem realizados por organizações ou instituições públicas ou privadas cuja principal atuação esteja voltada para o enfrentamento ao racismo e/ou à promoção da igualdade racial. 

A atuação especializada da promotoria de justiça, aliada aos instrumentos legais como o ANPP, contribui para uma eficiência punitiva deste crime que afeta não apenas a honra do indivíduo, mas toda sua memória, existência, história, sua cultura, suas crenças, sua autoestima, sua saúde física e mental. Daí porque se considera que dentro do sistema de Justiça, deve existir uma rede de apoio e atendimento às vítimas de racismo, incluindo delegacias, promotorias, varas, serviço social, psicólogos e profissionais afins, devido à complexidade desse delito. 

5 Considerações Finais 

A história da formação da sociedade brasileira é repleta de tristes exemplos de formas de empregar narrativas a fim de banalizar o discurso e comportamentos preconceituosos, vide o discurso hegemônico da existência de uma democracia racial e do apelo ao mito da cordialidade brasileira.    

Essa falaciosa democracia racial não resiste a uma análise mais acurada, afinal a convivência entre brancos e negros é ditada por relações hierárquicas de subalternidade. Os pretos são, social e historicamente, associados ao desempenho de labores serviçais, ocupando o posto de doméstica, faxineiro e porteiro. Sem qualquer demérito aos valorosos profissionais, não há equivalência racial nos mais altos estratos sociais. Entre as posições de maior destaque, e no centro decisório da vida pública, a presença negra é coadjuvante.  

É preciso que o Ministério Público, enquanto órgão constitucionalmente criado com a função de proteção da ordem e da defesa dos direitos individuais indisponíveis, artigo 127 e seguintes (BRASIL, 1988), esteja física, humana e ideologicamente estruturado para que possa de forma efetiva combater o racismo e todas as formas de discriminação acometidas contra pessoas negras no Brasil. 

Referências 

ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural. São Paulo: Jandaíra, 2020. 

BAHIA. Ministério Público. Resolução nº 005/2006. Institui o Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação – GEDHDIS do Ministério Público da Bahia Disponível em: https://biblioteca.sistemas.mpba.mp.br/biblioteca/index.html. Acesso em: 09 ago. 2022. 

BAHIA. Ministério Público. Enunciados 27 e 28. CONCRIN. Conselho de procuradores e Promotores de Justiça com atuação criminal. TJBA – DIÁRIO DA JUSTIÇA ELETRÔNICO – Nº 3.168 – Disponibilização: quarta-feira, 31 de agosto de 2022 Cad 1 / Página 2469-2471. 

BRASIL. Decreto-Lei n. 2.848/1940. Código Penal. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm. Acesso em: 04 ago. 2022. 

BRASIL. Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Diário Oficial da União: Rio de Janeiro, p.  19699, 13 out. 1941. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm. Acesso em: 19 dez. 2021. 

BRASIL. [Constituição (1967)]. Constituição [da] República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal.  

BRASIL. [Constituição (1967)]. Emenda constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 20 out. 1969. Seção 1, p. 8.865. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc_anterior1988/emc01-69.htm. Acesso em: 04 nov. 2022.   

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Glossário 

Denegar: (Lat. denegare.) Negar,recusar, indeferir. 
Fonte: SANTOS, Washington dos. Dicionário jurídico brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. 

Prazo decadencial: Designa o lapso de tempo em que, ininterrupta e improrrogavelmente, o negócio jurídico deva realizar-se, sob pena de perda do exercício do direito. 
Fonte: SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 31. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. 

Statu quo: Locução latina, exprimindo o mesmo estado, o estado em que está, a exata situação ou a posição das coisas. É geralmente empregada, na linguagem jurídica, justamente para aludir à forma, posição ou situação das coisas, ou dos fatos, em determinado momento, isto é, antes ou depois de certo acontecimento. 
Fonte: SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 31. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. 

Notas

1. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (IBGE – PNAD) 2019, mostram que 42,7% dos brasileiros se declararam como brancos, 46,8% como pardos, 9,4% como pretos e 1,1% como amarelos ou indígenas, totaliza, portanto, a partir da soma de pretos e pardos em uma maioria populacional negra.   
2. Como bem esclarecido por Vaz (2021), “a Constituição de 1824 definiu o catolicismo como religião oficial do Império, garantindo, no entanto, a liberdade de culto de outras religiões, desde que exercido em ambiente doméstico e sem ostentação de templos. Em consonância com as normas constitucionais, o Código Criminal de 1830, em seu artigo 276, criminalizava a celebração pública, em casa ou edifício com forma exterior de templo, de cultos de outra religião que não a oficial do Estado. A pena prevista era de dispersão do culto pelo juiz de paz, demolição da forma exterior do templo, além da sanção de multa imputada individualmente aos participantes das reuniões. Como forma de manter o controle sobre as pessoas negras escravizadas e suas práticas religiosas, registre-se, ainda, um Decreto de 1832 que obrigava os escravos a se converterem à religião católica. O Código Penal de 1890, por sua vez, tipificava o espiritismo (art. 157) e o curandeirismo (art.158), práticas diretamente associadas às religiões de matriz africana.”  

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