Desproteção social e o direito à convivência familiar
Este ensaio não representa a opinião institucional do Ministério Público do Estado da Bahia, de seus órgãos ou integrantes, sendo de iniciativa e responsabilidade exclusivamente pessoal das autoras.
O confronto entre perspectiva e realidade deixa mostras de paralisia no tempo. Décadas se passaram, mas as violações de direitos permanecem presentes no cotidiano das populações vulneráveis, apesar de mudanças legislativas.
As lutas pela redemocratização do país renderam um bom fruto, a Constituição Federal de 1988. Pródiga em garantir direitos e liberdades, instaurou uma vanguarda normativa tamanha, que, por alguns instantes, possibilitou a crença de que algo de novo estava por vir. Que o povo, desta vez, seria senhor e possuidor do Brasil.
Ledo engano. As forças políticas da elite, desde então, promovem o sufocamento da Carta Magna, atropelando-a com emendas, cortes e supressões, que a desfiguram e dilaceram sonhos, vidas e destinos, em especial de públicos mais vulneráveis, como crianças e adolescentes.
Objetos de direito, até então, na Constituição Federal de 1988, crianças e adolescentes, passaram a ser sujeitos de direitos, sendo estado, sociedade e família diretamente implicados na garantia destes direitos que foram alçados à categoria de prioridade absoluta.
Desta maneira, houve a institucionalização de novos direitos para o público infanto-juvenil, no artigo 227, que, além do princípio de prioridade absoluta, estabeleceu o direito de crescer no seio de suas famílias como princípio basilar.
Ao falar de novos direitos idealiza-se evidenciar a negligência legal e social por que passou o público infanto-juvenil no Brasil, até então objeto de direitos, cujos interesses não recebiam os cuidados devidos, de forma a assegurar o seu desenvolvimento integral.
Dito isso, releva apresentar o conteúdo do artigo 227, sobre o qual avaliar-se-á o desenrolar na legislação e, na realidade, no que pertine ao princípio da convivência familiar:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Nota-se da leitura que o legislador trata ser “dever” da família, da sociedade e do Estado, assegurar à criança e ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade o direito à convivência familiar e comunitária”. O que seria, portanto, convivência familiar?
Como forma de regulamentar o dispositivo constitucional, o Estatuto da Criança e do Adolescente esclarece os termos do princípio da convivência familiar no artigo 19, momento em que esclarece que o direito deve ser exercido em ambiente que garanta o desenvolvimento integral da criança e do adolescente. Assim, releva analisar o conteúdo do dispositivo legal mencionado.
Art. 19. É direito da criança e do adolescente ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente que garanta seu desenvolvimento integral.
Algumas palavras lançadas em meio a um dispositivo legal, apesar de fazerem total diferença na interpretação e construção de políticas e entendimentos, infelizmente passam despercebidas por alguns, e, desta forma, esvaziam a intenção do legislador, traindo aos ideais de construção do ECA.
A palavra ‘excepcionalmente’ evidencia a prioridade da criança e do adolescente crescerem no seio de sua família natural. Contudo, esta excepcionalidade deixa de ser atendida, quando se trata de crianças e adolescentes de famílias pauperizadas, que, sem acesso efetivo à Justiça, são afastadas de suas famílias, por razões, em sua maioria, provocadas pelo próprio Estado, por ação ou omissão. Matias e Teixeira (2012) comentam sobre a exposição de famílias em situação de pobreza e a precarização dos laços e dos cuidados familiares, esclarecendo que:
A pobreza e as situações de grave miséria econômica trazem, em seu bojo, situações de extrema vulnerabilidade social caracterizada pela vida em condições adversas, esfacelando ou ainda impedindo laços de convivência social e familiar, levando ao abandono, ausência de cuidados e dos vínculos relacionais, devido ao cotidiano de luta pela sobrevivência.
Apesar do ECA dizer expressamente que a pobreza não é motivo para a colocação de crianças e adolescentes em família substituta, a realidade demonstra o desrespeito a esta norma, quando órgãos do sistema de defesa e garantia de direitos de
crianças e adolescentes, sem o devido preparo, utilizam o afastamento familiar como regra e não como exceção.
Ao se defrontarem com situações de maior complexidade, se utilizam do acolhimento institucional como recurso, e passam a se comportar como se esta fosse a solução para o problema, não mais empreendendo novas medidas para sanar vulnerabilidades e promover o fortalecimento do vínculo familiar. Assim, agem como se a colocação de crianças na modalidade de acolhimento institucional encerrasse a sua participação na resolução do problema encontrado, quando, na realidade, apenas inicia um problema ainda maior.
A ineficiência de políticas sociais acaba por lançar famílias em situação de pobreza em situações de vulnerabilidade social. E, quando esta realidade ocorre, mais uma vez o Estado falha na proteção social, em razão da falta de efetividade na aplicação das medidas de proteção (previstas no artigo 101 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Matias e Teixeira (2012) comentam que:
A ausência do cumprimento da legislação de proteção social, aliada à ausência de políticas públicas de apoio, remete muitas famílias à condição de vulnerabilidade, às quais nem sempre conseguem cumprir sua função provedora e protetora, acarretando muitas vezes na perda da convivência familiar. Conforme entendimento de Gomes e Pereira (2005, p.361) o Estado reduz suas intervenções na área social e deposita na família uma sobrecarga que ela não consegue suportar tendo em vista sua situação de vulnerabilidade socioeconômica.
O artigo 101 do Estatuto da Criança e do Adolescentes traz diversas medidas de proteção que podem ser aplicadas para as crianças e, também, para seus pais e/ou responsáveis, mas não é o que se vê na prática, quando se observa uma série de desrespeitos à legislação que rege o acolhimento institucional, em razão do despreparo dos órgãos que compõem o sistema de defesa e garantia de direitos de crianças e adolescentes no Brasil.
Não raro ocorre inserção precoce de crianças e adolescentes no acolhimento institucional, sem o esgotamento de todas as possibilidades junto à família pelo conselho tutelar. Some-se a isto um sistema de justiça que não prioriza o andamento dos processos, o que retarda a definição da situação das vidas de diversas crianças, que ficam por anos afastadas de suas famílias, ainda que cessado o motivo que causou o acolhimento.
Percebe-se, também, a estigmatização da família de origem das crianças, que é tratada como criminosa, quando, na maior parte das vezes, são vítimas de um sistema omisso, ante a ineficiência ou ausência de políticas públicas que dê condições mais dignas para a população. Matias e Teixeira (2012) bem explicam este processo, ao dizer:
Em relação às famílias pobres, co-relacionada à lógica das políticas sociais, estava a ideia de que a família é constitutiva do problema social e de que seus responsáveis não tinham capacidade de educar e proteger seus membros. Nessa perspectiva, Mioto (2004) esclarece que o trabalho social com famílias dirigiu-se às chamadas famílias “desestruturadas”, “incapazes”, com práticas socioeducativas desenvolvidas numa dimensão normatizadora e disciplinadora.
Muito pode ser atribuído ao despreparo dos órgãos do sistema de defesa e garantia de direitos, mas muito se deve ao assistencialismo presente na sociedade, que compreende que as famílias pobres deveriam agradecer por famílias mais abastadas “pegarem” seus filhos para criar. De uma maneira ou de outra, esta realidade precisa ser enfrentada, por se retratar em grave desrespeito ao princípio da convivência familiar e comunitária. Sobre o tema, Matias e Teixeira (2012) afirmam:
As famílias, alijadas das mínimas condições socioeconômicas, são expostas a situações de vulnerabilidades sociais que fragilizam suas funções protetivas, e consequentemente, o convívio familiar. Portanto, a determinação básica é econômica e política, a falta de renda, trabalho, serviços públicos de apoio à família geram rupturas familiares, desvinculação e empobrecimento das relações humanas. Nessa perspectiva, a prevenção não é apenas o investimento no subjetivo, mas em ambos, pois, sem inclusão da família, ela continuará negligente, melhor dizendo, negligenciada para realizar suas funções.
Os direitos existem, são claros, bem regulamentados. Nada justifica os desrespeitos e violações identificadas na medida de proteção de acolhimento institucional. É preciso dar um salto no tempo, para que lei e realidade se conjuguem e os princípios que regem os direitos da criança e do adolescente sejam obedecidos.