Este ensaio não representa a opinião institucional do Ministério Público do Estado da Bahia, de seus órgãos ou integrantes, sendo de iniciativa e responsabilidade exclusivamente pessoal das autoras.
Ao refletir sobre as realizações e perspectivas do Ministério Público (MP), deparamo-nos com um turbilhão de pensamentos, no mais das vezes, caóticos, tal qual o universo das atribuições ministeriais, hoje revolvido por um cenário pós(?) pandêmico e agravado por recentes alterações legislativas capazes de – sem nenhum exagero – redesenhar a atuação em, pelo menos, dois dos âmbitos cruciais: o criminal e o de tutela do Patrimônio Público.
De forma paralela, e não menos turbulenta, uma nuvem, com significativa robustez, pairou sobre a autonomia da instituição, numa investida legislativa acerca da composição do Conselho Nacional do Ministério Público-CNMP e suas atribuições, que transbordariam num controle da atuação finalística, ferindo a autonomia e independência do Ministério Público.
No âmbito criminal, o rompante é bem caracterizado pelas soluções negociadas, que entraram com força total a partir da lei 13.964/2019. Ao se estender a amplíssima gama de crimes à possibilidade de Acordos de Não Persecução Penal – ANPPs, conferiu-se protagonismo e responsabilidade ímpares ao Ministério Público em termos de atuação extrajudicial e de resolutividade.
A reformulação da Lei de Improbidade Administrativa, ainda mais recente, deflagrou um sem-número de indagações teóricas e práticas, ante às quais uma só certeza prevalece: nada será como antes.
Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos? São perguntas que pautaram nossa compreensão filosófica do humano, e que ressoam igualmente nas instituições, enquanto criação cultural. Nesse paralelo, as perguntas formuladas ao longo da história sobre o próprio Direito – o que é, para que serve, e a quem serve? Como retoma e formula António Casimiro Ferreira (FERREIRA, 2019) – são e serão sempre oportunas para o Ministério Público.
Sem qualquer pretensão de respondê-las – desejamos aprofundá-las e multiplicá-las – as presentes reflexões são apresentadas tendo por mote os eventos, temas e palestras para a Semana do Ministério Público do Estado da Bahia – nossa SMP, já que ela reflete de maneira muito fiel as inquietações do momento, e nos insere outras, cuja importância se ilumina diante das primeiras.
Vamos pela mão de J J Calmon de Passos, imortalizado pelo seu legado, a quem o Ministério Público baiano homenageia perenemente, por meio do prêmio que leva seu nome. Encontramos uma personalidade inquieta, uma genuína compreensão do lugar e compromisso políticos que os profissionais do Direito, e de forma aguda, os membros do Ministério Público ocupam e devem ter.
A tentativa de nos desiludir acerca do que é o justo cristalizada na palestra proferida no início do nosso século é oportuna, sobretudo para aqueles intitulados promotores de justiça (e não da Justiça). Naquela divertida intervenção, proferida na urgência de quem, por cada minuto a mais de vida, sentia ganhar na loteria, como dizia Calmon de Passos, afirmava que se pudesse matar alguém, só mataria aquele que, perguntado sobre o que era o justo, afirmasse, sem titubear, sabê-lo. Segundo o Professor, a periculosidade desse pensamento é imensa para a sociedade.
Com efeito, a ideia de um justo absoluto é nociva, é tirânica, porque exclui as diferentes mundividências de uma sociedade plural, cujos interesses igualmente plurais o Ministério Público, enquanto instituição, declara, no âmbito de suas atribuições, promover. A soberba – ou a mistificação, para usar a expressão de Calmon de Passos – acerca da justiça, e da sua possibilidade de realização pelo direito, nos cega para o direito como discurso e como processo, que deve ser o mais participativo, aberto à divergência, e por isso democrático, possível.
Nos cegam ainda para o fato de que “a institucionalização de privilégios é inevitável em uma sociedade humana que coloca de um lado os incluídos e de outro os excluídos” – como disse ainda aquele que se orgulhava e ao mesmo tempo se envergonhava de ter cumprido seu dever enquanto membro do Ministério Público, diante da seletividade do sistema de justiça criminal. Estamos do lado dos incluídos ou dos excluídos? Para que servimos, afinal? E a quem servimos nesse cenário?
Seguindo naquela mesma lição, para nossa sorte, registrada para a posteridade, Calmon de Passos bradava “democracia é participação, é poder de influenciar decisões em qualquer nível, democracia pede o mínimo de igualdade, não há democracia entre desiguais – e, no entanto, dizemos que não precisamos gerar igualdade”.
Passados alguns bons anos de proferidas estas palavras, está o Ministério Público (já em TERRADOIS?) aprendendo a manejar mais uma nova ferramenta do sistema de justiça criminal, o ANPP, numa realidade antes profundamente judicializada, agora completamente transformada para a atuação extrajudicial, que, apenas ao fim, desaguará no Poder Judiciário, o qual, diante da opinião do dominus litis, elucubramos, tenderá a concordar na maioria esmagadora dos casos.
Qual é o papel do Ministério Público neste novo cenário, enquanto agente-chave da execução de uma política criminal? Há, primeiro, uma política criminal clara, ou melhor, deliberada? Há alguma possibilidade de o cidadão processado influenciar de forma efetiva essas decisões? Há igualdade mínima? Qual a regulamentação desse procedimento a ponto de garantir tal igualdade mínima e possibilidade de efetiva influência na decisão dos órgãos do sistema de justiça? Questões pungentes que se colocam no veio mais violento de atuação estatal estão no contexto dessa nova era de soluções negociadas – um caminho sem volta – que, por isso, merecem de nós um olhar atento, sob pena de fazer desvanecer posições estruturalmente muito distintas, em áreas com racionalidades, também, díspares.
Desse grande universo de delitos cometidos sem violência ou grave ameaça, com pena mínima de até 4 anos – dos quais se exclui o tráfico de drogas quando não aplicado o redutor do §4º, do art. 33 da lei 11.343/06 – verdadeira obsessão do sistema de justiça criminal – mas se incluem delitos contra a Administração Pública, por exemplo – saltamos para uma realidade diferente que é a do crime organizado. Aí onde alegada e reconhecidamente a luta é desigual. Conceito amplamente criticado, quando do seu surgimento pela dogmática penal (Cf. ZAFFARONI, 1996), a fenomenologia é uma realidade, inclusive na prática judiciária, porém muito diversificada.
É possível falar em crime organizado de forma geral? E de que forma temos lidado com os variados segmentos em que ele se manifesta? Rememoremos que a prática de forma organizada era, reconhecida, desde Sutherland (SUTHERLAND, 1940) como uma característica ínsita à criminalidade dita de colarinho branco. Onde estão concentrados os nossos maiores esforços institucionais? E aqui vale repetir a pergunta acima, com algum desenvolvimento: há, primeiro, uma política criminal clara, construída com a participação da mola propulsora do sistema de justiça criminal – O Ministério Público? Conduzimos ou nos deixamos conduzir nessa senda tão crítica para o Estado democrático de direito?
O conduzir ou deixar-se conduzir, aliás, nos leva para um outro tema de alta relevância que exorbita a atuação em âmbito criminal e é transversal a todo desempenho do Ministério Público. Diante do sem-número de demandas que chegam aos órgãos, parece termos enxergado tarde (antes tarde) que os recursos são escassos, finitos, e as necessidades aparentemente infinitas, sobretudo para um órgão avesso à inércia, e com uma missão imposta tão hercúlea: “zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia”. E esse é apenas um dos nove incisos, do art. 129 da Constituição, matriz de nossa arquitetura institucional, sendo que o nono inciso ainda determina: “exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade (…)”.
É assim que a necessidade do adequado aproveitamento de nossos escassos recursos ulula, e nisso ferramentas como os planos de atuação para as promotorias de justiça, em consonância com nosso quase desconhecido Planejamento Estratégico, surgem como ferramentas potencialmente preciosas para uma almejada otimização. Fervilham logo algumas questões: seria possível, legal, necessário, realizar um controle de demandas, tendo em conta um plano de atuação em harmonia com um plano estratégico institucional? Que parâmetros para a sua formulação? Qual o limite dessa possível discricionariedade regulada? Como conferir-lhe accountability?
Sendo o Ministério Público – no desenho institucional trazido pela Constituição de 1988 – responsável pela fiscalização dos ciclos de políticas públicas de cidadania, há de ser possível avaliar o real impacto de sua atuação na gestão de adimplemento dos Direitos Sociais. Ou seja, demonstrando-se a responsividade causada, com a atuação da Administração Pública fiscalizada; quais foram os impactos sentidos pelo usuário do serviço para solução dos obstáculos que se colocavam à fruição da cidadania em plenitude.
Volta-se à Instituição, portanto, para a solução dos conflitos fundamentais, assim entendidos, como aqueles capazes de promover “uma reforma estrutural (structural reform) em um ente, organização ou instituição, com o objetivo de concretizar um direito fundamental, implementando ou corrigindo uma determinada política pública” (DAHER et al., 2019, p. 48).
Nesse sentido, ao menos desde 2000, o Ministério Público vem sendo paulatinamente forjado para uma atuação resolutiva. Prova-o a edição da Recomendação nº 54, de março de 2017 do CNMP, ancorada na perspectiva de ser a instituição, ela própria, uma porta direta de acesso à justiça. Parece que perdeu o espaço o promotor de gabinete, que possui papel apenas figurativo na proposição de demandas judiciais. Aquele que se propõe a promover alguma justiça há de fazê-lo ante o fato (social): os membros ministeriais têm o dever de se articular com a comunidade em busca da construção de estruturas e soluções para suplantar as irregularidades identificadas na execução das políticas públicas.
Tais aspectos se mostram ainda mais urgentes, diante de alterações recentes e radicais da Lei de Improbidade Administrativa (pela 14230/2021), que trouxe, dentre novidades e mutilações, prazos muito mais curtos para uma resposta ministerial e judicial. Em meio a tamanho atordoamento trazido pelas referidas mudanças, que fizeram erodir uma forma de atuar prestes a completar três décadas, parece-nos despontar uma unidade institucional em torno da construção de um adequado conteúdo da norma para o avanço, com o mínimo de retrocesso. Adaptação, para evitar a morte, e na melhor das hipóteses, para uma vida melhor.
Em todos os referidos âmbitos a tal independência funcional palpita.
A tarefa do Ministério Público, tal qual forjada a partir da Constituição de 1988, é a de defender o Estado Democrático de Direito. A independência funcional, antes de ser uma garantia do membro, enquanto indivíduo, presta-se a preservar a atuação técnico-jurídica do órgão, voltada à persecução dos propósitos institucionais. Almeja impedir que a atuação ministerial seja sequestrada por pressões externas ou por agência interna eventualmente desvirtuada.
Trata-se de garantia que repele vontades escusas ou em descompasso com o projeto constitucional. O Ministério Público, na forma como instituído pelo art. 127 da Constituição Federal, deve necessária observância ao regime democrático e aos interesses sociais e individuais indisponíveis. Esta é a moldura legal que norteia a postura institucional e o atuar finalístico do órgão.
É nítido que um possível controle de demandas, dentro de parâmetros normativos e regulamentares não pode ser feito de maneira unipessoalmente independente, sob pena de descambar para a arbitrariedade, vulnerabilizando, ainda, os membros que assim se aventurem. Para a nova LIA, ou há unidade na construção e defesa de um conteúdo jurídico – não nos enganemos, sempre suscetível de disputar-se – coerente, ou nos esfacelaremos. E, no âmbito criminal, seja nos cada vez mais cotidianos ANPPs, seja no enfrentamento a organizações criminosas, precisamos olhar para a mesma direção, enquanto instituição, refletir sobre nosso lugar nesse sistema intrinsecamente violento que é o penal, sobretudo, se o ocupamos deliberadamente, ou se somos levados – e conosco levamos tantos outros – pela enxurrada.
Fomos projetados para a união e indivisibilidade.
E de que forma nos sentimos pertencentes a essa unidade, uma instituição que medeia a nossa interação com as pessoas que afetamos? Um pertencimento compromissado com nosso lugar político, e, portanto, atento ao todo? Um provedor de asas para um voo solo, tão mais perigoso quanto mais próximo do que nos ilumina?
Em meio a toda essa complexidade interna, e por ela, precisamos nos indagar de que forma nos comunicamos com a sociedade. A comunicabilidade – intimamente relacionada à accountability, ou seja como a atuação ministerial é externada e compreendida pelos envolvidos, e por essa sociedade plural, é um imperativo de legitimidade, e de legitimação das soluções encampadas pelo Ministério Público, porque, voltando a Calmon de Passos, “cada vez que postulamos, nos manifestamos, decidimos, não estamos decidindo no âmbito da dogmática, no âmbito dos princípios, estamos atingindo uma pessoa concreta, alguém que nasceu, viveu e vai morrer, e tem uma história pessoal irrepetível (…)”, ou seja, pessoas, como já dito, por Adela Cortina (CORTINA, 2007), ao defender sua ética cordial, para seres da nossa carne e osso.
Enfim, se o direito serve para contar até três, como apontado por François Ost (OST, 2017), ou seja, para inserir um terceiro que serve para que o mais forte não prevaleça – pela sua força – na vida em comunidade, fazemos votos de que, nessa semana, pensemos nesse lugar que não é desta, ou daquela instituição, ou pessoa, mas de um projeto civilizatório comum, do qual toma parte o MP, voltado a, e composto por pessoas de carne e osso.
E sigamos pensando, como na SMP 2021, não absortos pelas nossas viagens individuais, introspectivas, solitárias, mas em conjunto, e não de uma forma paroquial, mas abertos, com as ideias dos mais diferentes quadrantes, visões, e mundos para os quais contribuem os demais saberes, como a sociologia, a filosofia, a ciência política, a psicologia.
Assim, quem sabe, sem pretensão de sermos justos, sejamos menos injustos.