Brincadeira de criança nas redes sociais

Este ensaio não representa a opinião institucional do Ministério Público do Estado da Bahia, de seus órgãos ou integrantes, sendo de iniciativa e responsabilidade exclusivamente pessoal do(a) autor(a).

Três contas da rede social Instagram foram utilizadas para publicar vídeos na segunda semana de agosto de 2019, nos quais pais famosos brincavam com seus filhos de dois, três e cinco anos. Trajando fantasias, eles prepararam comida, moldaram números com material colorido e praticaram truques de mágica. Tais cenas levaram a dezenas de milhares de curtidas e a quase quinhentos comentários, situação natural para vídeos publicados em contas com centenas de milhares de seguidores. Uma delas com mais de um milhão. Tais brincadeiras, no entanto, estavam a serviço de uma empresa de transporte que contratou os espaços para divulgar campanha com o tema “dupla imbatível”. As crianças, portanto, não participaram de um momento de intimidade familiar, mas da gravação de uma peça de propaganda que tinha por objetivo convencer os demais usuários da plataforma de que a anunciante oferta serviços com “preço e qualidade”. 

Em maio de 2020, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo confirmou sentença que impôs multa à agência responsável por intermediar a contratação das crianças, considerando a violação de normas do Estatuto da Criança e do Adolescente. O acórdão publicado no Diário Oficial não analisou questões relacionadas a danos sofridos pelas crianças, mas uma questão formal: ausência de autorização judicial para a produção dos vídeos. Não existem, no texto da decisão, informações sobre punição da anunciante ou atuação do Sistema de Justiça quanto a eventuais condutas ilícitas praticadas pelos pais das crianças. Na visão unânime dos desembargadores, que se basearam em jurisprudência consolidada há mais de uma década no Superior Tribunal de Justiça, a gravação dos vídeos em ambiente residencial não supre a necessidade de alvará. 

A grande audiência gerada a partir de conteúdo publicado nas redes sociais vem cada vez mais sendo aproveitada para veiculação de campanhas publicitárias, que se beneficiam da simpatia natural que todos sentem com a atuação de crianças em vídeos que revelariam situações de intimidade familiar. Esse é um tema que sempre foi desafiador para o Sistema de Justiça, especialmente no Brasil, onde o controle do desempenho do trabalho infantil artístico é atribuído à Vara da Infância e da Juventude, que precisa avaliar caso a caso e, após decisão fundamentada, emitir alvará. No cenário atual, de consolidação do capitalismo de vigilância e da economia da atenção, a questão assumiu proporções inimagináveis. Toda conta de rede social é uma transmissora em potencial de campanhas publicitárias. 

A Internet, tecnologia pensada no final da década de 1960 para conectar redes de computadores de todo o Planeta, que resistiria até mesmo ao temido cenário de conflito nuclear, dada sua arquitetura que até hoje não depende de uma estrutura central para organização do fluxo de dados, permitiu que, trinta e cinco anos depois, pessoas de continentes diversos pudessem dialogar com a mesma facilidade e a custo financeiro muito baixo. Embora algumas aplicações tenham surgido nos EUA ainda na década de 1990, como Classmates e ICQ, foi em 2004 que o Orkut despontou como um sucesso, sobretudo no Brasil, e com ele dezenas de milhões de pessoas passaram a interagir por meio de comunidades e a publicar detalhes da sua vida privada, pretendendo com isso ampliar os relacionamentos sociais, localizando antigos colegas de escola ou encontrando um parceiro para relacionamento amoroso. 

A troca de cartas entre parentes – que já não estava em alta durante a década de 1990, considerando a popularização do telefone – ainda na virada do século já havia cedido a maior parte do espaço que ocupava para a tecnologia de e-mail. O ato de enviar um texto de parabéns no dia do aniversário hoje é substituído por poucas palavras digitadas no aplicativo de troca de mensagens instantâneas. Quando muito, parentes e amigos enviam uma gravação em áudio, que é tocada pelo recebedor com velocidade duplicada. É crescente a aceleração na velocidade do fluxo de dados. Sejam dados financeiros relacionados a transferências bancárias, como no caso do PIX, ou imagens registradas em momentos especiais, a exemplo da primeira apresentação artística que uma criança realiza em sua escola. Tudo trafega de maneira rápida e eficiente por meio de serviços gratuitos, que exploram os dados e a atenção dos usuários para geração de receita a partir da venda de espaços publicitários. 

O reduzido custo dos dispositivos eletrônicos conectados à Internet permite que mesmo pessoas que estão na base da pirâmide social presenteiem crianças com equipamentos que fotogravam, produzem vídeos em alta resolução ou se comunicam com qualquer pessoa do Planeta que também esteja conectada à Internet. Mesmo que não exista conectividade do equipamento à rede de telefonia móvel, a maioria deles possui a tecnologia de conexão wi-fi. As empresas ofertam acesso gratuito por pequeno período, como forma de captar clientela, e existem sinais disponibilizados por centros comerciais ou por entes públicos que podem ser facilmente utilizados pela criança. Já se fala em direito fundamental a estar conectado e existem estudos sobre os impactos da falta de acesso à Internet de qualidade para o incremento dos níveis de desigualdade social. 

As medidas adotadas pelas empresas que fornecem os serviços mais populares da atualidade, como Instagram, Twitter e TikTok, para impedir que pessoas com menos de treze anos de idade criem uma conta, são facilmente contornáveis por criançasUma menina de onze anos que tenha acesso a um dispositivo conectado à Internet pode, em questão de minutos, criar uma conta informando data de nascimento acrescida de dois anos e imediatamente gravar vídeo ou compartilhar fotografias acessíveis por qualquer pessoa também conectada à Internet: de colegas de escola, que também podem estar utilizando indevidamente a aplicação por meio do mesmo artifício de falsidade ideológica, até criminosos localizados em outros continentes, que identificam potenciais vítimas com menor experiência e chegam a praticar os crimes de exploração ou até de violência sexual de forma remota. 

As instituições de ensino privada, a maioria com intensa comunicação por redes sociais, chegam a estimular crianças a publicarem mídias em que aparecem trajando uniforme e divulgando a marca da empresa em que estudam. Isso quando professores não incluem no programa atividades que devem gerar, ao final, uma postagem que expresse o resultado de determinada pesquisa. Uma criança que esteja estudando música brasileira, por exemplo, para obter nota máxima em uma atividade, precisa realizar um vídeo editado com as principais obras do artista que pesquisou, explicando detalhes da sua carreira. Tal vídeo, por sua vez, deverá ser publicado em rede social como uma forma de estimular o que seria um uso positivo da tecnologia, qual seja, divulgação de informações de interesse público. 

Por trás desse tipo comunicação em massa que explora a imagem dos alunos para gratuitamente atingir metas comerciais (captação de novos alunos, reforço da marca etc.), existem questões ligadas à segurança da criança, que expõe para todos os usuários da Internet o local onde estuda e se vê obrigada a cometer ilícito de falsidade para que consiga utilizar um serviço de Internet não projetado para pessoas com a sua idade. Nesse cenário, despontam contas de crianças com mais talento artístico e que contam com pais que decidem investir em uma possível carreira que renderá elevados ganhos financeiros e uma vida de muito luxo, com viagens para o exterior e divulgação das principais marcas do mercado. Entram em cena profissionais como agentes, produtores e fotógrafos, que passam a produzir conteúdo protagonizado pela criança com o intuito de gerar mais engajamento de outros usuários da plataforma. 

A depender do sucesso obtido por todo esse aparato técnico, o número de seguidores cresce exponencialmente e viabiliza o início da exploração econômica da atividade artística desempenhada pela criança. Ela precisa dividir seu tempo antes dedicado a atividades escolares e de lazer com agendas de ensaio e de gravação, idas a salões de beleza, participação em eventos durante o final de semana em centros comerciais, sem falar nas viagens para realizar cursos de capacitação oferecidos por empresas sediadas nas grandes cidades. A presença ativa dessa criança no ambiente digital estimula outras crianças do seu convívio familiar e comunitário a fazerem o mesmo. Especialmente em colegas de escola, surge a vontade de ter um espaço privilegiado para exposição do seu pensamento e que também viabilize momentos de prazer como o recebimento de presentes ou a contemplação do grande número de interações logo após a publicação de fotografias e vídeos. 

A administração do direito à imagem de crianças sempre foi conferida aos seus pais, a exemplo de outros aspectos de sua vida civil, como a gestão patrimonial. Não há razão para atribuir ao Poder Judiciário todo e qualquer ato relacionado às questões mais simples da vida de uma criança, como a escolha da escola onde será matriculada, se vai estudar música ou programação de computadores, se vai jogar futebol ou basquete. A decisão caberá aos pais e somente na hipótese de conflito entre eles é que se deslocará a um membro da magistratura, que terá o dever de instruir o processo com relatórios e pareceres técnicos antes de tomar a decisão. O registro fotográfico da primeira ida de uma criança à praia e a impressão de cópias para remessa a avós e a tios é, e sempre foi uma prática salutar, que reforça os vínculos familiares e contribui para preservar a memória familiar, dada a distribuição dos arquivos físicos em diversos locais. 

O atual estágio do desenvolvimento tecnológico, com o armazenamento de arquivos eletrônicos em nuvem, elimina o problema da preservação, mas permite que pais realizem tal difusão de modo a obter audiência superior à de programas de televisão aberta. A foto da primeira apresentação na escola é compartilhada com parentes e com toda a Internet. Contas do TikTok protagonizadas por crianças podem facilmente ultrapassar a marca de um milhão de seguidores semanas após a sua criação. Isso representa um grande potencial para a veiculação de propaganda e a obtenção de ganhos financeiros. A exploração econômica da imagem da criança, por sua vez, não se confunde com simples atos de gestão da vida do filho, inerentes ao poder familiar. Trata-se de atividade que deve ser acompanhada pelo Poder Judiciário, através da expedição de alvará que imponha as condicionantes necessárias a resguardar os direitos fundamentais da criança que desempenha o trabalho artístico. 

São exemplos dessas condicionantes, a limitação do número de horas semanais dedicadas à atividade, a necessidade de manter frequência e rendimento escolar satisfatórios e a delimitação de conteúdos que não podem ser publicados com a participação da criança. As peças publicitárias não podem estimular o uso de drogas ou difundir propagandas de jogos de azar, armas ou bebidas alcoólicas. Também não podem servir como instrumento de burla à proibição de propagandas abusivas que tenham por destinatárias outras crianças. Existe sólida regulamentação das ações publicitárias nos meios de comunicação tradicionais quanto à propaganda voltada ao público infantil, mas o dinamismo do ambiente digital tem permitido que grandes e pequenas empresas consigam contornar as limitações fixadas pelos mecanismos de autorregulamentação publicitária e assim direcionar publicidade a grande contingente de crianças. 

A fiscalização do cumprimento de tais condicionantes deve ser compartilhada entre família, Poder Judiciário, Ministério Público, anunciantes e, importante destacar, plataformas por meio das quais o trabalho artístico é desenvolvido. Elas detêm ferramentas tecnológicas que podem facilitar e muito a contenção de eventuais desvios daquilo que foi imposto quando da autorização da atividade artística. Podem e devem utilizar tais ferramentas para sancionar a conta em casos de descumprimento das condicionantes fixadas nos alvarás, como costumam fazer quando ocorrem violações dos seus termos de uso. Também precisam reforçar as ferramentas de moderação em língua portuguesa para remover contas notoriamente utilizadas por crianças. De acordo com uma ex-funcionária do Facebook, 90% dos esforços de moderação da empresa são direcionados a conteúdo publicado na língua inglesa, embora o número de usuários corresponda a cerca de 10% da plataforma. 

O Ministério Público, por meio das Promotorias de Justiça da Infância e da Juventude, eventualmente agirá contra os interesses econômicos dos pais, buscando defender os direitos fundamentais de crianças que desempenham trabalho artístico por meio das redes sociais. Além da atuação em processos judiciais na fase que antecede a decisão concessiva do alvará, sugerindo condicionantes ou mesmo se pronunciando pelo indeferimento, quando constatada circunstância que inviabilize o trabalho artístico nos termos propostos, poderá adotar medidas judiciais ou extrajudiciais com o objetivo de exigir que os provedores sejam mais atentos no acompanhamento das contas em que é exibido conteúdo infantil, de modo a concretizar as normas jurídicas em vigor no Brasil. 

Por mais que tais condicionantes causem diminuição do orçamento familiar, pela fixação de limites à exploração da imagem das crianças, ou dos lucros das empresas, a partir da supressão de conteúdo com grande potencial de gerar intensa audiência e resultados positivos nas estratégias comerciais e publicitárias, trata-se de atuação importante para impor a seriedade que o tema exige. Não existe nenhuma graça em submeter crianças, ainda na primeira infância, a trabalho artístico que tenha o potencial de afetar o seu desenvolvimento. Cabe ao Poder Judiciário avaliar cada caso concreto e decidir sobre a viabilidade da iniciativa publicitária. O riso daqueles que hoje ficam felizes com o lucro proporcionado pelos inovadores modelos de negócios pode custar muito choro e sofrimento amanhã. É preciso ser muito inocente para aceitar um preço como esse. 

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