JUDICIALIZAÇÃO DOS CRIMES DE RACISMO: MP RESOLUTIVO?

Delina Santos Azevedo 

É mestre em Direito Público pela UFBA. Servidora do Ministério Público do Estado da Bahia. Integrante do Grupo de Pesquisa sobre racismo – CEAF/MPBA.

Este ensaio tem por objetivo apresentar uma discussão acerca da (não) resolutividade dos processos judicializados em face de crimes de racismo. Ele se pauta na análise de processos da Promotoria de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa do Ministério Público do Estado da Bahia, para contrapor os argumentos da função do Ministério Público, o racismo institucional e a resolutividade dos processos sob o ponto de vista da reprovação da conduta e reparação à vítima.

O racismo antinegro é problema inconteste que existe na sociedade brasileira, permeando as relações sociais e institucionais, por meio da discriminação individual ou coletiva das pessoas de cor negra, seja pela ofensa a honra, violência física ou verbal e ataques a templos e cultos religiosos de matrizes africanas. E, para além do racismo acometido contra o indivíduo, é preciso considerar que o racismo se encontra presente em todas as estruturas da sociedade, inclusive, na composição de membros, órgãos e organismos do Sistema de Justiça, como reflexo e reprodutor dele mesmo. Entende-se, então, que as instituições que tutelam os direitos e a democracia, devem assumir em suas estruturas a transformação para a igualdade racial.

Enquanto Função Essencial da justiça, previsto no artigo 127 e seguintes, “o Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.”

O Ministério Público resolutivo “é aquele que atua na solução de conflitos sociais, no âmbito da própria Instituição e em parceria com a sociedade, sem a necessidade de recorrer ao Poder Judiciário, já tão assoberbado.” (SIMONETTI, 2014). Espera-se que o Ministério Público encontre formas alternativas de resolução de conflitos, a partir da racionalização de suas atribuições, de forma a obter efetividade nas suas ações com real impacto social.

É importante que se diga, que apesar de historicamente o órgão ter surgido com a função acusatória, inquisitorial e criminal, a evolução dos tempos, das sociedades e consequentemente do próprio sistema de Justiça, as funções civis e extrajudiciais para o Ministério Público foram ampliando e ganhando maior relevância na atuação e na obtenção de resultados práticos. Há uma mudança evidente do perfil demandista para o perfil resolutivo.

Isto porque ficou evidente que a alta demanda do Judiciário acaba por paralisar ou retardar o andamento dos processos, inviabilizando a realização do direito pleiteado e discutido em sede judicial. Ademais, as formas alternativas de resolução de conflito, com transações, acordos (TAC, ANPP), justiça restaurativa audiências públicas, reuniões e até mesmo através de ofícios que, em muitos casos, garantem maior aproximação com o órgão, possibilita o diálogo e assim amplia as possibilidades de restauração do bem/direito violado e reparação à vítima individual e coletiva.

Considerando a necessidade de promoção da eficiência da atuação institucional com enfoque na celeridade, na ampliação da atuação extrajudicial e em uma atuação proativa, efetiva, preventiva e resolutiva, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) aprovou a Recomendação nº 54/2017, que dispõe sobre a Política Nacional de Fomento à Atuação Resolutiva do Ministério Público brasileiro, trazendo para pauta esse anseio por um MP mais responsivo.

Para que se vislumbre uma atuação resolutiva e democrática do sistema de justiça sobre as demandas de racismo, injúria racial, racismo religioso, homofobia e transfobia, considerando a complexidade dos casos, é preciso que este se organize de forma especializada para atendimento às vítimas desde a queixa prestada na delegacia, passando por atendimento psicológico, social, quanto na promotoria de justiça e nas varas do tribunal. Nesse sentido, desde 2016, por meio da Recomendação nº 40, o CNMP recomenda a criação de órgãos especializados na promoção da igualdade étnico-racial, com atuação preventiva e repressiva, com atribuição extrajudicial e judicial cível e criminal. Todavia, essa realidade é ainda incipiente dentro do Ministério Público brasileiro e baiano, que, por sua vez, possui apenas 01 única promotoria especializada em todo estado para atendimento dessa demanda.  

Em recente pesquisa realizada pelo Grupo de Pesquisa sobre racismo do Centro de Estudos e Aperfeiçoamento do Ministério Público do Estado da Bahia1, foi feito um levantamento das ações penais oferecidas pela Promotoria de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa da comarca de Salvador, única no Estado da Bahia, sobre crimes de injúria racial, racismo e intolerância religiosa, no período de 2016 a 2021.

Dos 82 processos analisados, tem-se o seguinte panorama: das Denúncias apresentadas, 78 foram recebidas e 04 rejeitadas. Sobre a tipificação penal: 60 são de Injúria Racial, 17 de Racismo e 5 de Intolerância Religiosa. Dos 15 processos concluídos, 07 tiveram ou estão sob transação penal (sursis), houve 05 condenações e 03 absolvições.  Sobre o andamento dos processos encontrou-se que 67 processos continuam em andamento e 15 deles foram concluídos. 

Outro ponto observado é a demora no andamento, quanto a propulsão e instrução dos autos. Os processos levam em muitos casos em torno de 02 (dois) anos para terem a sua primeira audiência de instrução e julgamento, e em casos mais críticos até 09 anos, para ocorrência da primeira audiência de instrução, gerando um déficit de resolução do processo em razão da mora processual.

Em regra, nas absolvições são alegadas ausência de comprovação dos fatos sem ao menos a realização de audiência de instrução e/ou acordo ou pedido de suspensão condicional do processo, revelando desídia e falta de compromisso com a realização da proteção/resposta do sistema à vítima do racismo. Fica, pois, o entendimento de que o ajuizamento de ações pelo Ministério Público não garante o cumprimento efetivo do combate ao racismo, gerando a baixa resolutividade da maioria dos processos. 

O que se constatou inicialmente na pesquisa foram os baixos índices de condução/finalização do processo, desde a marcação das audiências até a sentença.

Foi também constatado baixo número de condenações criminais e quase ausência de reparação à vítima. Em apenas 1 deles, o réu foi condenado a pagar uma quantia em pecúnia, no valor de R$ 2.000,00 à vítima, além das outras condições próprias da suspensão condicional do processo. Verificou-se, neste caso específico, o cuidado do promotor de justiça que atuou e acompanhou o seguimento do feito em cobrar a realização de audiência, inclusive ressaltando na peça informativa ser “fundamental que a vítima seja escutada, para que seja possível que o Ministério Público avalie as condições de reparação do dano no caso concreto”, reforçando na argumentação do dano racial coletivo causado não apenas à vítima, mas à coletividade negra do Brasil.

Em outro caso em que houve transação penal, o valor em pecúnia acordado para pagamento pelo réu foi destinado a uma instituição que cuida de crianças com câncer, logo, não havendo correlação direta entre o crime e a reparação do dano de cunho racista. Também não foi identificado, em nenhum dos casos, nem em audiência nem em petição, algum pedido de desculpas ou retratação à vítima. 

Sobre esses pontos, os enunciados 27 e 28 do Conselho dos Procuradores e promotores de Justiça com atuação criminal – CONCRIN/MPBA2, publicados no corrente ano, que se referem à propositura do Acordo de Não persecução Penal em casos de racismo determinam que estes precisam conter cláusulas mínimas para garantir a real reprovação de tais condutas criminosas e real reparação à vítima. Devem ser considerados:

[…] valor mínimo de reparação, indenização por dano moral coletivo, considerar fundos ou ações, organizações ou instituições públicas ou privadas específicos destinados ao enfrentamento ao racismo e/ou à promoção da igualdade racial, além da participação do investigado em cursos ou grupos reflexivos de letramento racial, a serem realizados por organizações ou instituições públicas ou privadas cuja principal atuação esteja voltada para o enfrentamento ao racismo e/ou à promoção da igualdade racial.

(VAZ, 2021).

O que ocorre em crimes de racismo, como visto e considerando que o racismo é um dano estrutural (social), é que esses crimes são sempre muito mais do que a ofensa pessoal causada ao indivíduo, mas sobretudo um prejuízo causado a uma coletividade difusa e com dívidas sociais e históricas, e que precisa ter a vontade do Estado e do Sistema de Justiça para alcance de reparação geral e específica sobre cada caso.  

Muitos casos ficam sem uma resolução substancial quanto à questão racial seja por falta de provas, seja pela rejeição inicial pelo poder judiciário, ou, principalmente, pela falta de resolutividade e reparação às vítimas (individual ou coletiva), entres outros obstáculos institucionais.  

Verifica-se, portanto, que a judicialização dos processos de racismo individual ou coletivo não é uma forma efetiva de combate ao racismo antinegro. É preciso que haja um reconhecimento por partes das instituições da Justiça sobre os crimes de racismo, a importância e relevância destes na formação das relações sociais no Brasil, para que se estruturem e capacitem de forma a buscar o verdadeiro combate à produção e reprodução do racismo, diante da danosidade das sequelas psicossociais que ele causa, no sentido de manutenção da opressão e negação de direitos a uma parcela da população, ligada por laços étnico-raciais.  

Não há como se pensar em efetivação de uma democracia social e participativa sem o verdadeiro e real combate ao racismo, sob todas as suas formas e por todas as instâncias e instituições, públicas e privadas. O racismo é uma doença social que precisa ser definitivamente curada e transformada em ação corretiva e emancipatória da humanidade. Sem esse resgate verdadeiro de liberdade e igualdade de direitos, não há como se falar em princípio fundamental da dignidade da pessoa humana. 

Referências

ALMEIDA, S. Racismo Estrutural. São Paulo: Jandaíra, 2020.

BAHIA. Ministério Público. Enunciados 27 e 28. CONCRIN. Conselho de procuradores e Promotores de Justiça com atuação criminal. TJBA – DIÁRIO DA JUSTIÇA ELETRÔNICO – Nº 3.168 – Disponibilização: quarta-feira, 31 de agosto de 2022 Cad. 1 / Página 2469-2471.

BRASIL. Decreto-Lei n. 2848/1940.Código Penal. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm. Acesso em: 04 ago. 2022.

BRASIL. Lei 7716/1989.Define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor.  Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L7716.htm. Acesso em: 04 ago. 2022.

CNMP. Conselho Nacional do Ministério Público. Recomendação nº 40. Disponível em: https://www.cnmp.mp.br/portal/images/Recomendacoes/Recomenda%C3%A7%C3%A3o-040.pdf. Acesso em: 19 out. 2022.

CNMP. Conselho Nacional do Ministério Público. Recomendação nº 54.  Disponível em: https://www.cnmp.mp.br/portal/images/Recomendacoes/Recomenda%C3%A7%C3%A3o-054.pdf. Acesso em: 19 out. 2022.

SIMONETTI, R. O necessário fortalecimento da atuação do Ministério Público na defesa dos interesses transindividuais. JUS.com.br. 7 mar. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26852/o-necessario-fortalecimento-da-atuacao-do-ministerio-publico-na-defesa-dos-interesses-transindividuais. Acesso em: 04 ago. 2022.

VAZ, L. M. S. S. O acordo de não persecução penal nos casos de racismo. Migalhas. 6 dez. 2021. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/olhares-interseccionais/356037/o-acordo-de-nao-persecucao-penal-nos-casos-de-racismo. Acesso em: 04 ago. 2022.

VAZ, L. M. S. e S. et al. Persistência do racismo institucional no Brasil: perspectivas de enfrentamento pelo Ministério Público. In: JANUÁRIO, L. M.; SILVA, V. P. M.; PÁDUA, R. I. (org.). Tendências em Direitos Fundamentais: Possibilidades de Atuação do Ministério Público, v. 1 / Conselho Nacional do Ministério Público. Brasília: CNMP, 2016, p. 99–130.

VAZ, L. M. S. S.; RAMOS, C. A justiça é uma mulher negra. Belo horizonte: Casa do direito, 2021.

WERNEK, J. Racismo Institucional: uma abordagem conceitual. Geledés – Instituto da Mulher Negra. Disponível em: http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2016/04/FINAL-WEB-Racismo-Institucional-uma-abordagem-conceitual.pdf. Acesso em: 19 out. 2022.

Glossário

  • Desídia: Negligência, ociosidade, preguiça; incúria, desleixo ou descaso.
    Fonte: SANTOS, Washington dos. Dicionário jurídico brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.
  • Pecúnia: Do latim pecunia, de ecus, sempre foi empregado em sentido técnico do Direito ou da Economia, para designar o dinheiro ou a moeda.
    Fonte: SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 31. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
  • Persecução: Do latim persecutione, indica ato ou efeito de perseguir, a perseguição.
    Fonte: SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 31. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
  • Sursis: Vocábulo de origem francesa, tirado do verbo surseoir (sobrestar, suspender a execução), tem, gramaticalmente, o mesmo sentido de sobrestamento, dilatação, prorrogação, moratória, espera.
    No sentido jurídico, porém, exprime propriamente o sobrestamento, ou a suspensão da feitura de um ato, ou da aplicação de uma sanção.
    É, geralmente, empregado na terminologia técnica do Direito Penal, exprimindo a suspensão do cumprimento da condenação.
    Desse modo, o sursis entende-se o benefício que se concede ao condenado primário, para o subtrair ao cumprimento da pena, seja de detenção, ou de reclusão, sob certas condições e prazo determinados.
    A própria sentença que conceder o sursis especificará as condições a que fica subordinada a suspensão (Cód. Penal, art. 78).
    A concessão do sursis não se estende à pena pecuniária nem às penas acessórias. Desse modo, a própria concessão se estabiliza, inicialmente, pelo cumprimento dessas obrigações. O beneficiário que, embora solvente, não cumpra o pagamento da multa nem o pagamento da indenização que lhe é imposta, pode ter revogada a concessão, sendo, então, compelido a cumprir a pena que lhe foi imposta.
    Fonte: SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 31. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014.

Notas

  1. Pesquisa em andamento do Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Racismo (GEPR), liderado pelos promotores de Justiça Lívia Santana Vaz e Saulo Mattos. 
  2. (TJBA – DIÁRIO DA JUSTIÇA ELETRÔNICO – Nº 3.168 – Disponibilização: quarta-feira, 31 de agosto de 2022 Cad 1 / Página 2469-2471). 

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